segunda-feira, 29 de junho de 2015

Hannah Arendt e a Banalidade do Mal

Despedimo-nos deste ano letivo com textos da responsabilidade de alunos de Filosofia. Penso que não há melhor maneira de acabar do que esta, com a palavra dos alunos, aqueles que são a justificação de todo o nosso trabalho.
Imediatamente após ter publicado dois textos dos alunos João Silva e Renato Silva, respetivamente, publicamos o da aluna Adriana Fernandes sobre o conceito de «banalidade do mal», da filosofia de Hannah Arendt, filósofa a que também já aqui fizemos referência (post de 7 de março). Todos estes textos foram escritos pelos alunos com a finalidade de serem aqui publicados.


Hannah Arendt e a Banalidade do Mal
Já alguma vez parou para pensar em todas as atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial? Certamente que sim, já todos o fizemos. Um dos aspetos mais chocantes que encontramos são as ações das pessoas envolvidas, atrocidades que nós consideramos completamente imorais e impensáveis mas que alguém foi capaz de cometer.
É exatamente sobre este assunto que a filósofa Hannah Arendt se vai debruçar. Hannah Arendt nasceu na Alemanha (1906), filósofa de origem judaica, passou os seus primeiros 30 anos de vida na Alemanha Nazi, até que saiu ilegalmente do país e emigrou para os EUA (1940). Foi nos EUA que lhe apareceu uma das maiores oportunidades da sua carreira: cobrir jornalisticamente o julgamente de Adolf Eichmann, em Jerusalém, para o jornal New Yorker. (Adolf Eichmann – membro do partido nazi, responsável pelo transporte de prisioneiros judeus dos territórios ocupados para os campos de extermínio).
Durante o decorrer do julgamento, este afirma não ser antissemita, que no final da 2ª Guerra sentiu medo daquilo que se seguiria por não ter mais ordens e diretivas para seguir, falava com frases feitas, colocava o dever acima da sua própria consciência e assumia a culpa do transporte de judeus mas não do extermínio em si. Hannah Arendt surpreende-se então por estar perante um homem comum, que não era um monstro nem um indivíduo demoníaco e que, tal como muitos dos envolvidos no Holocausto, não era sádico nem pervertido, mas sim “assustadoramente normal”.
É neste momento que Hannah Arendt coloca uma das suas maiores e mais importantes questões: O que levará um homem aparentemente normal a cometer tamanhas atrocidades?
Para começar, Hannah Arendt procura entender quais as condições que estiveram na origem deste estado totalitário. Vivia-se, na Alemanha, uma crise económica e política (Pós 1ª Guerra Mundial) onde se encontravam indivíduos isolados, sem terem qualquer noção de comunidade que ansiavam por algo que desse sentido à sua vida. Neste contexto, o líder totalitário apercebe-se desta situação e vai transformar uma sociedade comum num estado totalitário. Como? Alterando completamente os valores da sociedade. A particularidade de Hitler foi que implementou o regime nazi como a única alternativa possível e viável e todo este processo foi feito com um toque e aparência de normalidade. Assim, nesta nova sociedade com os valores completamente pervertidos, as palavras de Hitler passam a ser a lei e ninguém desobedece nem sequer as põe em causa. Esta lei passa a ser o dever dos cidadãos, que obedecem sem questionar.
Deste modo, Hannah Arendt conclui que a inversão dos valores da sociedade ocorre principalmente ao nível da lei moral. Enquanto que, hoje em dia, a nossa moralidade nos diz “Não matarás”, na altura dizia “Matarás”. É sob estas circunstâncias que o Mal vai perder a sua característica que o torna reconhecível: ser uma tentação. Enquanto que nós sabemos que não devemos roubar, a tentação é para roubar mas resistimos à tentação, por ser errado. Da mesma forma, naquela altura a moral afirmava que deviam roubar e a tentação era para não roubar, mas eles não cediam à tentação. O mal vai então entrar nesta sociedade sem qualquer reconhecimento. As pessoas tornam-se incapazes de distinguir o bem do mal, renunciando àquilo que os torna ‘pessoas’: a capacidade de pensar.
É a este fenómeno que Hannah Arendt vai chamar de Banalidade do Mal, o aparecimento do mal numa sociedade como uma coisa banal e trivial, sem ser reconhecido por aqueles que o praticam, que se encontram incapazes de fazer juízos morais. Foi esta ‘incapacidade de pensar’ que levou muitos homens comuns a cometer atrocidades numa escala monumental nunca antes vista.
Hannah Arendt conclui assim que o mal não é radical, como o havia considerado, mas sim extremo, isto é, o mal é algo superficial que não tem raízes. Instaura-se  numa sociedade tal como um fungo que se espalha à superfície, influenciando tudo e todos mas que não tem um fundamento, é cometido por pessoas que não têm uma índole demoníaca nem quaisquer más intenções.
Hannah Arendt considera fundamental refletir sobre estas questões e sobre todo este processo, para que, caso um dia se voltem a reunir condições como idênticas, consigamos apercebermo-nos e evitar que uma catástrofe igual se repita.
Gostaria apenas de concluir com uma passagem do seu livro Eichmann em Jerusalém, sobre a qual todos deveríamos refletir:
“Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela "poderia acontecer" na maioria dos lugares, mas não aconteceu em todos os lugares



A Globalização da Indiferença

A voracidade do tempo nos media substitui rapidamente umas notícias por outras. Mas o tempo do pensamento é outro. Pode ser lento e pode agir a longo prazo. Refletir é exatamente re- fletir, voltar de novo a pensar e, assim, recuperar e criar novos sentidos.
A partir de um acontecimento a que aqui fizemos referência (vd. posts de 20 novembro, 2014), o aluno Renato Silva elaborou este texto reflexivo que intitulou A Globalização da Indiferença :

«Passaram seis meses, desde o momento em que a “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida, dezanove dias depois de ter nascido prematuramente, com 25 semanas de gestação e 410 gramas de peso.
Provavelmente muitos já não se lembrarão, mas infelizmente este trágico desfecho relembra-nos que apesar dos extraordinários avanços alcançados na medicina, o ser humano mantém uma dimensão biológica que não lhe permite ultrapassar alguns constrangimentos, próprios do mundo natural do qual faz parte.
Mas este acontecimento tornou-se também notícia por outros factos, que nos devem levar a refletir sobre a natureza humana e a vida em sociedade. O ser humano é, por definição, uma espécie animal da ordem dos primatas, e nessa qualidade temos muitos pontos em comum com todas as outras espécies animais que habitam o nosso planeta.  Mas o Homem é um animal racional, e este “pequeno” pormenor distingue-nos de todos os outros animais. Racional é o ser que pensa, raciocina, que age segundo a razão.
Esta capacidade para pensar libertou-nos de uma dimensão meramente instintiva, e permite-nos agir e não apenas reagir. Foi esta esta capacidade para moldar a natureza, a natureza em geral, mas também a sua própria “natureza”, que permitiu ao Homem impôr-se aos demais.
Identificamo-nos com comportamentos de outras espécies animais, que por vezes parecem ir para além do mero instinto, quer se trate da “solidariedade” e “altruísmo” das formigas e das abelhas, quer se trate do “amor maternal” e “coesão familiar” nas baleias, nos primatas, nos elefantes.
Muitos defendem que o “instinto maternal” e o “espírito de grupo” entre alguns animais parece, afinal, bem mais puro que o “amor pelo próximo” e a “solidariedade de grupo” demonstrado pelos humanos, neste mundo contemporâneo,  onde se incentiva o “individualismo” primário, como que num regresso a um passado de “cada um por si”.
A capacidade para “pensar mais além” distingue-nos  das outras espécies animais e, desde cedo, o ser humano percebeu que teria mais hipóteses de sobreviver em grupo, do que isoladamente, num ambiente hostil. Os primeiros pequenos grupos nómadas evoluíram e cresceram ao longo do tempo, até às modernas e complexas formas de Estado e Comunidade Internacional.  Como indicaram Hobbes, Locke e Rousseau, através de um contrato social, o indivíduo prescindiu de parte das suas liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos mais vastos.
Mais recentemente, após a segunda Grande Guerra vingou a ideia de Estado social, ou se preferirmos Estado providência ou Estado de bem estar. Depois de um período de guerras destrutivas, confrontos sociais e crises económicas graves, tornava-se necessária uma solidariedade institucionalizada pelo Estado, e porque não uma solidariedade institucionalizada entre Estados, que levasse a cabo a tarefa de redistribuição dos benefícios gerados pela comunidade nacional, ou internacional.
O mundo atual é o mundo da globalização. Falamos de globalização económica, globalização social, globalização cultural, globalização política. O desenvolvimento dos meios de comunicação e das tecnologias de informação tornou o nosso mundo mais pequeno. Esta globalização caracteriza-se pela diminuição das distâncias e do tempo, fenómeno a que David Harvey chamou compressão espaço-tempo. Tornou-se possível a difusão de notícias e conhecimentos de forma instantânea, possibilitando a transposição de barreiras físicas e políticas em todo o mundo. Não é negligenciável o papel que o desenvolvimento das tecnologias de informação tem tido na aproximação entre povos e na denúncia das injustiças e atrocidades cometidas um pouco por todo o mundo.
Mas talvez o maior desafio que nos espera seja o da globalização da indiferença, como insistentemente tem referido o Papa Francisco: “Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros, não nos interessam os seus problemas, nem as atribulações e injustiças que sofrem e, assim, o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem”...“Esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão mundial tal, que podemos falar de uma globalização da indiferença. Trata-se de um mal estar que temos obrigação, como cristãos, de enfrentar”.
Esta indiferença começa por ter uma dimensão individual, porque tal como num reality show da vida real vão desfilando diariamente, de forma vertiginosa, uma sucessão de episódios da mais inusitada violência, quer sejam agressões entre colegas de escola, violência doméstica, atos de terrorismo, o drama dos que morrem nas rotas de imigração ilegal em busca de uma vida melhor, ou as imagens daqueles que sofrem a exclusão social, ou que nem sequer têm como se alimentar, e vamos vivendo tudo isto com uma certa normalidade, colocando-nos à margem destes acontecimentos, como se nada pudessemos fazer para os tentar alterar.
Mas esta indiferença tem também uma dimensão de Estado. O Estado, aquele pelo qual as pessoas abdicaram de parte das suas liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos mais vastos, é hoje comandado pelos mercados, um Estado vergado sob as contas públicas desequilibradas e défices públicos excessivos, a braços com as exigências dos credores internacionais para pagar agora o que deve, tem tendência para olhar para as pessoas não como pessoas, mas como uma décima de ponto percentual que é preciso corrigir no défice público. Mas a indiferença entre Estados é também real e, apenas para citar um exemplo, aquela ideia de comunidade de Estados de bem estar, tão bem traduzida nas palavras de Jean Monnet “Mais do que coligar Estados, importa unir os homens”, a que se começou por chamar Comunidade Económica Europeia, e mais tarde adoptou o nome de União Europeia, cada vez mais parece correr o risco de ficar para a história como  uma miragem utópica.  
     Onde se enquadra em tudo isto a luta da “guerreira” Margarida? Emigrados em busca de um futuro melhor, o casal Eugénia e Gonçalo vivem o nascimento de Margarida, um bebé prematuro extremo (antes de 28 semanas e abaixo de 1000 gramas de peso). No Hospital privado onde a bebé nasceu, são confrontados com uma despesa de 1 000 euros por dia e, sem possibilidade de suportar tal despesa, são confrontados também com a aparente indiferença do Estado de destino (Dubai) e do Estado de origem (Portugal). Felizmente que as tecnologias de informação, e as tão propaladas redes sociais, que muitas vezes servem para veicular propósitos não muito nobres, foram afinal o motor de uma extraordinária onda de solidariedade humana, que abanou a indiferença dos Estados, e permitiu a Eugénia e Gonçalo manter a esperança durante dezanove dias.
A “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida, mas a sua luta, e a onda de solidariedade que se gerou em torno dela, despertou consciências e permite-nos a esperança de que a globalização da indiferença poderá ser vencida. »     
   


Determinismo e Liberdade

Perante o problema filosófico do livre-arbítrio, o aluno João Silva toma posição neste texto da sua responsabilidade. Após dois anos como aluno de Filosofia, elegeu este tema como aquele que mais o sensibilizou.

«O Determinismo é a teoria filosófica que diz que para qualquer acontecimento existem condições que não poderiam ter causado qualquer outro acontecimento. Deste modo, podemos dizer que é baseado no Princípio da Causalidade, segundo o qual se considera que todos os acontecimentos têm uma causa, e por conseguinte os acontecimentos são determinados pelas suas causas e teoricamente previsíveis.
Então, como podemos pensar que temos a liberdade de escolher o que fazer? A resposta é simples, o livre arbítrio é uma ilusão que resulta de não conhecermos inteiramente as causas das nossas ações, levando-nos a pensar que não têm causa. Para ilustrar este argumento, J. Locke criou uma interessante analogia: um indivíduo a dormir é trancado numa sala escura; ao acordar ele decide permanecer na sala, não sabendo que esta está fechada à chave. No entanto, o desconhecimento da sua condição levou-o a acreditar que tem a liberdade de escolher ficar na sala.
Porém, o Determinismo tem implicações sobre a responsabilidade moral: pode-se argumentar que não podemos ser moralmente responsáveis pelas nossas ações se não temos alternativa a estas, se estamos predeterminados, ainda antes de nascer, a realizá-las. Logo, argumentar-se-ia que é injusto castigar (com penas de prisão, por exemplo) aqueles que cometem crimes, por muito graves que sejam.
É esta a linha de argumentação que seguiu o advogado C. Darrow na defesa de Leopold e Loeb em 1924, que raptaram e assassinaram um rapaz de 14 anos. C. Darrow argumentou que os criminosos não poderiam ter feito outra escolha, dados os valores da sociedade pós-guerra em que cresceram: o valor atribuído à vida humana era pouco, visto que a população se regozijava com a morte de milhares de soldados inimigos (o que dá que pensar acerca dos muitos jogos e filmes que atualmente banalizam a violência). Leopold e Loeb foram condenados a prisão perpétua.
Voltando à questão do Determinismo, a ciência, sendo também baseada no Princípio da Causalidade, tem-nos mostrado que para todo o acontecimento físico existe uma causa, que forma uma cadeia causal até ao Big Bang. Laplace chega a conjeturar que, se fosse possível conhecer a posição e velocidade de cada uma das partículas do Universo, seria possível calcular a sua posição no passado e no futuro, o que implicaria, teoricamente, a possibilidade de prever o futuro.
Todavia surgiu recentemente a mecânica quântica que explica acontecimentos ao nível subatómico como sendo baseados em probabilidade, considerando que alguns acontecimentos têm uma natureza aleatória. Esta teoria tem sido usada para argumentar contra o Determinismo, contudo admitir que os acontecimentos ocorrem aleatoriamente não implica a existência de livre arbítrio, pelo contrário, não só as ações não seriam livremente escolhidas pelo agente, como seriam escolhidas aleatoriamente. Imagina então que em vez de leres este texto como tens lido, lerias as palavras numa ordem aleatória, ou, ainda mais absurdo, que quem escreveu o texto apenas martelou aleatoriamente o seu teclado.
Concluindo, a minha opinião pessoal é que face aos argumentos que referi é difícil pensar que temos alguma possibilidade de escolha do que fazer a seguir. Dito isto, e dada a contradição com a natural crença de senso comum no livre arbítrio, não posso deixar de referir que é quase impossível acreditar a tempo inteiro que não podia ter agido de outra maneira.»