domingo, 28 de fevereiro de 2021

O caso Phineas Gage (2) "Gage já não era Gage" ? - Algumas considerações sobre o livre arbítrio

Como vimos na publicação imediatamente anterior, Gage mudou completamente a sua personalidade após o acidente, de tal modo que os seus amigos dificilmente o reconheciam. Como diz Damásio, «observavam entristecidos que "Gage já não era Gage". Era agora um homem tão diferente que os patrões tiveram que o dispensar pouco tempo depois de ter regressado ao trabalho. (...). O problema não residia na falta de capacidade física ou competência mas no seu novo caráter". (Damásio, O Erro de Descartes, Lisboa, Europa-América, 1998, p. 28).

O estudo do caso de Phineas Gage faz com que Damásio levante questões fundamentais relativamente ao estatuto do ser humano.

«Poderá Gage ser descrito como estando dotado de livre-arbítrio? Teria sensibilidade relativamente ao que está certo e errado, ou era vítima do seu novo design cerebral, de forma que as suas decisões lhe eram impostas e por isso inevitáveis? Era responsável pelos seus atos? Se concluímos que não era, que nos pode isso dizer sobre o sentido de responsabilidade em termos gerais? Existem muitos Gages à nossa volta, indivíduos cuja desgraça social é perturbadoramente semelhante. Alguns têm lesões cerebrais em consequência de tumores cerebrais , de ferimentos na cabeça ou de outras doenças do foro neurológico. Outros, no entanto, não tiveram qualquer doença neurológica e comportam-se, ainda assim, como Gage por razões que têm a ver com os seus cérebros ou com a sociedade em que nasceram. Precisamos de compreender a natureza destes seres humanos cujas ações podem ser destrutivas tanto para si próprias como para os outros, caso pretendamos resolver humanamente os problemas que eles colocam. Nem o encarceramento nem a pena de morte - respostas que a sociedade atualmente oferece para esses indivíduos - contribuem para a nossa compreensão do problema ou para a sua resolução.»

Alguns filósofos sentem-se tentados a encontrar nas mais recentes descobertas das neurociências um forte argumento para a teoria determinista, considerando-a a melhor resposta para o problema do livre arbítrio. No entanto, o facto de sabermos o "como" acontecem certos fenómenos não nos permite responder ao "porquê". Quer dizer, o facto de, em todos os processos mentais, dos mais simples aos mais complexos, estarem envolvidos redes neurais e alterações bioquímicas não autoriza a considerar estes fenómenos como causa de estados mentais. A complexidade das interações que se estabelecem e a multiplicidade de variáveis envolvidas dificulta qualquer resposta simplista. Se é verdade que não é possível considerar um mundo mental separado de um corpo físico devemos precaver-nos para a tendência em passar daí para a redução do mental ao físico, permanecendo no  mesmo dualismo que rejeitámos.

Como considera Damásio «a dependência da razão superior relativamente ao cérebro de nível inferior não a transforma em razão inferior. O facto de agir de acordo com um dado princípio ético requerer a participação de circuitos modestos no cerne do cérebro não empobrece esse princípio ético. O edifício da ética não desaba, a moralidade não está ameaçada e, num indivíduo normal, a vontade continua a ser vontade.» (Ibidem, p.15)


Capa da edição da Europa-América, 1ª edição em português de 1995
(a obra foi publicada pela primeira vez em 1994, em língua inglesa)


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O caso Phineas Gage (1)

O jovem Phineas Gage aos 25 anos sofre um brutal acidente que muda toda a sua vida. Gage conseguiu recuperar de uma ferida profunda e, apesar de ter perdido parte do cérebro, não perdeu a capacidade da linguagem nem as suas funções intelectuais. Mas, depois do acidente, Gage tornou-se irreconhecível. A sua personalidade tinha mudado, Gage passou a manifestar um comportamento impulsivo e uma linguagem descontrolada e tornou-se incapaz de tomar decisões acertadas na sua vida. Como explicar tal facto? 

O acidente ocorreu em 1848 e Gage morreu aos 38 anos, em 1861. António Damásio, neurocientista português contemporâneo, recupera o estudo deste caso e coloca a hipótese de que "a razão humana está dependente não de um único centro cerebral mas de vários sistemas cerebrais que funcionam de forma concertada ao longo de muitos níveis de organização neuronal". Damásio irá desenvolver a tese de que "certos aspetos do processo da emoção e do sentimento são indispensáveis para a racionalidade", destruindo a ideia dominante de que os processos racionais de tomada de decisão são independentes da emoção e do sentimento, vistos como elementos perturbadores da racionalidade. É nesta separação entre o corpo (associado às emoções) e a mente (associada à razão) que Damásio vê o "Erro de Descartes", título do livro que edita em 1994, onde desenvolve as suas hipóteses inovadoras que farão caminho nas neurociências.


Reconstituição do cérebro e do crânio de Gage com a trajetória provável do bastão de ferro assinalada a vermelho.

Pode-se  ver aqui uma reconstituição cinematográfica do acidente de Phineas Gage

https://www.youtube.com/watch?v=m-m8xyoyQL8

Neste pequeno vídeo faz-se um resumo interessante do caso de Phineas Gage e da explicação de Damásio, seguindo o livro "O Erro de Descartes". Embora esteja em castelhano é fácil de acompanhar, principalmente quando se tem já algumas referências.







sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Consegues adiar a gratificação? Como está o teu autocontrole?



https://www.youtube.com/watch?v=LHbOkjOEusM

O "teste do marshmallow" foi criado pelo psicólogo Walter Mischel nos finais dos anos 60. O objetivo era poder avaliar o autocontrole e a capacidade de adiar recompensas. 
As crianças que participaram neste estudo - cerca de 600 - foram acompanhadas ao longo do tempo e, em 1989, Mischel estabeleceu uma relação entre o comportamento evidenciado na experiência inicial e outro tipo de condutas na fase da adolescência e estado adulto, como as relativas à vida escolar, profissional ou social.

Informações uteis aqui: 



segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Como escolher um bom recurso online

 

Hoje em dia, há muita informação e de fácil acesso. A maior dificuldade é selecioná-la, "separar o trigo do joio", quer dizer, distinguir a boa da má informação. As fontes que consultamos têm que ser fiáveis, de modo que possam contribuir para o nosso conhecimento e para a verdade que procuramos.

Há algumas perguntas que podemos fazer e que nos ajudam a navegar com bússola, encontrando o caminho sem nos perdermos e confundirmos, assegurando-nos o valor da informação que consultamos.

QUEM ?

PARA QUÊ?

PORQUÊ?

QUANDO?


Disponível em: https://www.theflippedclassroom.es/como-elegir-un-buen-recurso-online-una-guia-para-estudiantes/, consulta a 29 jan.,2021.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A vacina contra a Covid 19 é segura?

Desta vez, desafiamos os nossos alunos a aplicarem os seus conhecimentos sobre argumentos na análise desta notícia. 

Damos algumas pistas...

O argumento indutivo, para ser bom, necessita de preencher alguns requisitos. As inferências indutivas apresentam sempre uma margem de risco, por isso é preciso garantir certos procedimentos para nos assegurarmos do valor da nossa conclusão. Por exemplo, temos de trabalhar com uma "amostra ampla e representativa"...

Publicamos, então, esta notícia do jornal "Público" de 19 de novembro intitulada 

Covid 19: vacina de Oxford é "segura" e também provoca resposta imunitária em pessoas mais velhas.

A potencial vacina contra o novo coronavírus que está a ser desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca revelou-se “segura” e produziu uma resposta imunitária em pessoas acima dos 56 anos — aquelas que são mais propensas a desenvolver uma forma grave de covid-19. A vacina experimental já tinha mostrado resultados semelhantes numa faixa etária mais jovem, em adultos entre os 18 e os 55 anos. Os resultados da segunda fase dos ensaios, considerados “promissores”, foram publicados esta quinta-feira na revista científica The Lancet.

Na segunda fase dos ensaios clínicos, 560 participantes (160 entre os 18 e os 55 anos, 160 entre os 56 e os 69 anos e 240 com 70 anos ou mais) foram divididos em dez grupos e receberam a vacina da covid-19 (baptizada ChAdOx1 nCoV-19) ou uma vacina de “controlo”, neste caso a da meningite. Os participantes com mais de 55 anos também foram divididos em grupos e receberam uma única dose da vacina ou duas doses num intervalo de 28 dias.

Assim, os resultados mostram que a vacina causa poucos efeitos secundários e induz respostas imunitárias em todas as faixas etárias (quer tenha sido administrada uma dose baixa ou uma dose normal), provocando uma resposta imunitária dos linfócitos T, células importantes na criação de imunidade, num período de 14 dias após a vacinação. Quer isto dizer que a vacina é capaz de encontrar e atacar as células infectadas com o vírus. Por outro lado, o fármaco também provocou uma resposta de anticorpos dentro de 28 dias após a dose de reforço, o que significa que consegue encontrar e atacar o vírus SARS-CoV-2 quando este está a circular no sangue ou no sistema linfático.

A fase três dos ensaios está já em andamento para confirmar os resultados agora divulgados e para perceber o grau de eficácia da vacina na protecção contra a infecção pelo SARS-CoV-2 num grupo mais alargado de pessoas, incluindo idosos com problemas graves de saúde — até porque a fase dos ensaios que está agora terminada só incluiu cidadãos saudáveis que podem não ser representativos da generalidade da população mais idosa.

“As respostas imunitárias das vacinas são, muitas vezes, menores em adultos mais velhos porque o sistema imunitário se deteriora gradualmente com a idade, algo que também deixa os idosos mais susceptíveis a infecções. É crucial que as vacinas da covid-19 sejam testadas neste grupo, que também é um grupo prioritário para a imunização”, refere Andrew Pollard, professor da Universidade de Oxford (Reino Unido) e o principal autor do estudo. Pollard disse ainda que os resultados finais devem ser conhecidos até ao Natal.

Já Maheshi Ramasamy, co-autor, diz que as respostas geradas pela vacina em pessoas idosas “são encorajadoras” e espera que isto signifique que possa ajudar a proteger algumas das pessoas “mais vulneráveis ​​da sociedade”. “Precisamos de mais estudos antes de podermos dizer isso com certeza”, afirma, citado no comunicado da The Lancet.


A investigadora Sarah Gilbert afirmou que o estudo dá algumas respostas sobre a protecção de pessoas mais velhas, mas que ainda há dúvidas “sobre a eficácia e a duração da protecção”, que terão que ser confirmadas “em pessoas mais velhas com doenças pré-existentes”.

Depois da vacinação, os voluntários foram observados por um período mínimo de 15 minutos para se perceber se poderiam ocorrer efeitos nocivos imediatos, mas nada foi registado num período de sete dias. As reacções adversas à vacina ChAdOx1 nCoV-19 foram moderadas — os efeitos mais comuns foram dor e sensibilidade no local da injecção, fadiga, dor de cabeça, febre e dores musculares —, mas mais comuns do que as observadas com a vacina de controlo.

Foram registados “13 eventos graves nos seis meses após a primeira dose ser foi administrada, mas nenhum dos quais está relacionado com as vacinas em estudo”, lê-se no estudo. Os participantes vão continuar a ser monitorizados durante um ano após a vacinação. Os testes da vacina chegaram a ser suspensos em Setembro depois de um voluntário ter tido uma reacção adversa grave, mas foram retomados poucos dias depois.

Há 47 candidatas a vacinas em ensaios clínicos (em pessoas) e dez estão na fase 3 (em que é feita a avaliação dos resultados do fármaco em milhares de voluntários), segundo documentação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 3 de Novembro. A vacina de Oxford é uma das que surgem na frente da corrida para encontrar uma vacina viável para combater a infecção pelo coronavírus SARS-CoV-2. A equipa foi uma das primeiras a iniciarem ensaios clínicos em humanos.


Nas últimas semanas, várias empresas de biotecnologia e farmacêuticas tem-se chegado à frente e apresentado resultados (alguns ainda preliminares) dos ensaios clínicos das suas vacinas, entre estas a Pfizer e a sua parceira alemã BioNTecha Sinovaca Moderna e o Fundo de Investimento Directo Russo, que está a desenvolver a vacina Sputnik V.

Notícia retirada daqui: https://www.publico.pt/2020/11/19/ciencia/noticia/covid19-vacina-oxford-segura-tambem-provoca-resposta-imunitaria-pessoas-velhas-1939750, consulta a 24 de novembro, 2020.



Ainda o Dia Mundial da Filosofia 2020

A M.L., aluna do 10ºano, tem vindo a descobrir a Filosofia...

Decidiu, para este Dia Mundial da Filosofia, organizar este desdobrável, onde reuniu algumas ideias que a atraíram sobre a questão da Felicidade...






quinta-feira, 19 de novembro de 2020

PANDEMIA E FILOSOFIA (7)

 Nota: os subtítulos são da nossa responsabilidade.

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

 

 

Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas

 

João Cardoso Rosas, filósofo,

Professor na Universidade do Minho 


7. A dimensão existencial da filosofia ou para além da ética e da política

 

Para terminar, creio ser importante referir que a filosofia tem também uma dimensão existencial relevante, vocacionada para enfrentar na primeira pessoa as grandes interrogações sobre a vida, a morte, o nosso destino individual e coletivo. A filosofia, segundo a máxima ciceroniana de Montaigne, consiste em "aprender a morrer". Desde as grandes escolas filosófica das Antiguidade tardia, como o estoicismo e o epicurismo, ao existencialismo contemporâneo de autores como Camus e Sartre, passando por muitos outros, a filosofia pode ser um bálsamo para tempos difíceis ou, pelo contrário, um acordar das consciências adormecidas pelo efeito anestesiante da quotidianidade. Esta dimensão da filosofia, indo para além das áreas da ética e da política que aqui me propus tratar, será com certeza central nos próximos tempos, durante e após a pandemia[Conclusão]

 

Artigo publicado no Jornal Diário de Notícias a 19 de setembro 2020, excerto. Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-set-2020/filosofia-e-pandemia-uma-lista-de-problemas--12734662.html


PANDEMIA E FILOSOFIA (6)

 Nota: o subtítulo é da nossa responsabilidade.

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

 

Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas

João Cardoso Rosas, filósofo,

Professor na Universidade do Minho

 

6. O que fazer? Quem decide?

Um outro desafio que a pandemia lança é o do papel dos especialistas no processo de tomada de decisões. A ideia geral é que cabe aos especialistas, sobretudo cientistas, indicar aos políticos o que fazer - e que a fonte dos nossos problemas é o desrespeito pela opinião científica especializada. Não deixando de salvaguardar o papel dos experts, esta visão epistocrática tem de ser confrontada com uma epistemologia mais democrática e aberta à opinião dos não especialistas.

Com a crescente perceção dos problemas económicos provocados pela pandemia e pelo combate à pandemia, surge com maior acuidade a questão dos efeitos assimétricos da crise em função das desigualdades sociais preexistentes. Com a pandemia, será necessário voltar à reflexão sobre a justiça distributiva e incidir especialmente nos cuidados de saúde. Um outro aspeto específico da reflexão contemporânea sobre a justiça que terá de ser reavaliado é o da justiça em relação aos mais velhos e da justiça intergeracional (em relação às próximas gerações), dada a terrível situação vivida nos lares para idosos e a previsibilidade de mais pandemias no futuro.

Uma crise preexistente a esta pandemia é a dos refugiados e migrantes económicos que tem pressionado não apenas a Europa mas também várias outras partes do mundo. As crises de saúde e económicas que se avizinham nas regiões mais pobres do globo farão certamente eclodir novos movimentos de pessoas à procura de segurança física e económica. Em contexto pandémico, a questão da permeabilidade das fronteiras, da sua maior abertura ou fechamento, assim como da capacidade das sociedades de acolhimento para a integração dos novos migrantes, estará na ordem do dia. (continua)

Artigo publicado no Jornal Diário de Notícias a 19 de setembro 2020, excerto. Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-set-2020/filosofia-e-pandemia-uma-lista-de-problemas--12734662.html


PANDEMIA E FILOSOFIA (5)

 Nota: os subtítulos são da nossa responsabilidade.

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

 

Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas

João Cardoso Rosas, filósofo,

Professor na Universidade do Minho

 

 

5. Um desafio para a democracia

As questões relacionadas com a tecnologia conduzem a uma outra, mais genérica: a do eventual abuso do "estado de emergência", colocada, como vimos, por Agamben, entre muitos outros. Este tema é obviamente relevante quando abordado com respeito pelos dados empíricos. Os estados de exceção constitucionalmente previstos não têm de ser vistos como forma de minar a Constituição, ou como a revelação de que, no fundo, a Constituição não é democrática, mas antes como mecanismos internos que permitem salvaguardar a democracia em situações-limite, desde que não sejam prolongados indefinidamente (como acontece atualmente na Hungria).

No contexto histórico em que vivemos, a grande questão para a democracia tem a ver com a concorrência global com os regimes autocráticos, que tendem a reivindicar a sua superioridade no combate à epidemia. O cenário atual mostra uma disputa internacional entre os modelos democráticos, por um lado, e os modelos autocráticos como o chinês, por outro lado. Além disso, muitas democracias estão agora em crise interna, sob a pressão dos populismos que, nascendo em contexto democrático, tendem a arrastar essas democracias para o lado autocrático. Este é um desafio maior para a teoria democrática.

(continua)

Artigo publicado no Jornal Diário de Notícias a 19 de setembro 2020, excerto. Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-set-2020/filosofia-e-pandemia-uma-lista-de-problemas--12734662.html

PANDEMIA E FILOSOFIA (4)

 Nota: os subtítulos são da nossa responsabilidade.

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

 

Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas

João Cardoso Rosas, filósofo,

Professor na Universidade do Minho

 

3. Ética animal e ética ambiental

Um problema que tem sido correntemente levantado relaciona-se com a origem do novo coronavírus. O facto de a transmissão para humanos se ter dado num mercado onde se transacionavam espécies animais selvagens coloca no centro do problema da origem a relação entre o homem e a natureza. Há muito que as diversas correntes filosóficas da ética animal e da ética ambiental procuram criticar a relação de exploração e manipulação que existe em relação às espécies selvagens. Neste aspeto, a pandemia vem confrontar, de forma particularmente clara, as visões antropocêntricas prevalecentes que consideram que a natureza, incluindo os animais não humanos, é apenas um recurso ao serviço da espécie humana.

4. Liberdade versus segurança?

Uma outra questão tem a ver com o uso de tecnologias para a vigilância dos cidadãos e o controle da pandemia. A existência de novas tecnologias de vigilância e monitorização dos indivíduos coloca inúmeros problemas ao modo como concebemos a nossa relação com o Estado e, especificamente, como interpretamos as liberdades fundamentais que as democracias procuram estabelecer e preservar. Ainda no domínio da reflexão sobre a tecnologia, é de salientar a importância crescente das aplicações que tornam possível desempenhar à distância as tarefas que antes considerávamos apenas in propria persona. Estas transformações põem em causa a visão tradicional das relações interpessoais e dos laços de sociabilidade. (continua)

Artigo publicado no Jornal Diário de Notícias a 19 de setembro 2020, excerto. Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/19-set-2020/filosofia-e-pandemia-uma-lista-de-problemas--12734662.html