domingo, 23 de abril de 2023

Hannah Arendt - O Filme




Num tempo em que a informação falsa circula facilmente e em que somos bombardeados por notícias recebidas pelos mais variados meios, é cada vez mais necessário estarmos atentos e desenvolvermos uma atitude distanciada, de análise racional de todas as notícias e informação. Só uma atitude crítica nos pode precaver contra os excessos e abusos de poder, contra a propaganda e os mecanismos de manipulação que pretendem tolher a capacidade de pensarmos por nós próprios e de nos afirmarmos como cidadãos conscientes, ativos e intervenientes num mundo que é de todos e, por isso, é nosso também. 

Já aqui temos abordado muitas vezes a filósofa Hannah Arendt, cujo pensamento mantém uma atualidade, quase que diríamos, assustadora. Hanna viveu no período da Alemanha nazi, era judia, teve de sair da Alemanha, primeiro para França e depois para os Estados Unidos da América em 1941. Foi neste país que desenvolveu atividade jornalística e académica, tendo obtido cidadania americana dez anos depois, em 1951. 


Hannah Arendt em 1949

Um dos seus conceitos filosóficos mais fecundos é o de "banalidade do mal". Este conceito é forjado para responder ao desafio de entender como é que "pessoas normais" poderiam ter participado, sob formas diversas, no horror dos campos de concentração. Como é que pessoas normais, com um quotidiano banal, levando vidas sem nada de extraordinário poderiam, pelo silêncio, pela obediência, pela passividade ou alheamento, terem sido cúmplices da barbárie nazi. Quando os seres humanos deixam de pensar por si próprios, de se interrogar sobre o mundo no qual vivem, quando se tornam meros executantes de ordens e, por isso, delas se desresponsabilizam, tornam-se menos humanos e mais robots. As fronteiras entre o bem e o mal esbatem-se, a responsabilidade pessoal desparece e, quando isso acontece, o mal pode espalhar-se e ninguém estranha, tornou-se normal e habitual. 

Em 2012 estreou-se um filme sobre esta filósofa, tendo este blogue publicado uma notícia a propósito. Neste momento, decorridos cerca de 11 anos, o filme "Hannah Arendt", de Margarethe von Trotta, está acessível no youtube. Deixamos o link para o filme e republicamos parte do texto da altura, excertos de um artigo que pode ser lido na íntegra em http://sol.sapo.pt/inicio/Cultura/Interior.aspx?content_id=87275

Link para o filme "Hannah Arendt" :

https://www.youtube.com/watch?v=3FFhh0Ce59g

" (...) Ao contrário do que seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas horas estandardizadas uma vida tão complexa. O filme centra-se nos anos entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a ‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.

Se os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados? Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender. E é daí que lhe surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria política.

Qualquer um pode ser Eichmann?

A partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt, que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase impavidamente.

A coragem custou-lhe até amizades de uma vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a trabalhar numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Se hoje aceitamos com alguma facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora. Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar, devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.
Sofia, que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá, a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar pensamentos.
[...]

E qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade? São poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a humanidade, e sobretudo a acção política. “Ela não define os objectivos da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema social, de justiça e de igualdade”.


sexta-feira, 21 de abril de 2023

Immanuel Kant: o filósofo dos Direitos Humanos

É este o título de uma artigo de Helena Ferro Gouveia, saído no Jornal "Público" de 12 de setembro de 2004, assinalando os 200 anos decorridos sobre a sua morte. 

Immanuel Kant (22 de abril, 1724 - 12 de setembro, 1804)

Hoje, na véspera da celebração do seu aniversário, fazemos-lhe, de novo, referência. O seu pensamento continua a interpelar-nos e, de acordo com o trabalho que temos vindo a realizar com os nossos alunos, algumas ideias deste artigo revelam-se de especial pertinência. É sempre importante dar a dimensão da atualidade do pensamento dos filósofos, olhá-los como pessoas cujo pensamento pode, ainda hoje, contribuir para pensar e dar boa resposta aos desafios do presente.

Transcrevemos excertos do artigo acima referido que pode ser consultado aqui: https://www.publico.pt/2004/02/12/culturaipsilon/noticia/immanuel-kant-o-filosofo-dos-direitos-humanos-1185935


"Hoje, decorridos 200 anos sobre a morte do grande filósofo dos direitos humanos, da igualdade perante a lei, da cidadania mundial, da paz universal e acima de tudo do "Sapere Aude"("Ousa pensar"), a emancipação da razão, a Alemanha assinala a data com uma série de colóquios universitários, com a exibição na televisão pública do filme "Kant Reloaded" e com uma visita do ministro dos Negócios Estrangeiros, Joschka Fischer, a Kalininegrado. A Universidade de Bona disponibilizou na Internet, em acesso gratuito, o maior banco de dados mundial sobre o filósofo assim como as suas obras completas e cartas pessoais (www.ikp.uni-bonn.de/kant).

Filósofo da Revolução Francesa

Kant viveu numa época conturbada, marcada por grandes mutações sociais, políticas e religiosas. A "orientação teológica" da Filosofia é posta em causa - Deus vai sendo progressivamente substituído pela ciência, tendência contra a qual Kant vigorosamente lutará - e a soberania intelectual do homem passa, com o Iluminismo, a repousar na ciência, que adquiriu, depois de Isaac Newton, um estatuto de dignidade e credibilidade recusado a outras formas de pensamento.

Na perspectiva política, o fenómeno mais relevante é a configuração do Estado moderno e de novas formas de organização do poder. Os escritos políticos de Kant datam já da maturidade e são fortemente influenciados por dois acontecimentos históricos da altura: a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Americana (1776).

Não é em vão que foi classificado por Heine, Marx e Engels como o filósofo da Revolução Francesa. Há de facto alguma analogia entre ambas as revoluções e o pensamento kantiano: a emancipação do homem face à autoridade e a afirmação da liberdade. De tal forma que o eco de Kant é tão importante na França como na Alemanha.

Para o investigador francês Etienne François, "se Kant é considerado na França como uma referência incontornável, na Alemanha é visto como uma etapa da pensamento filosófico" uma vez que não existem entre os filósofos que verdadeiramente são significativos nenhum que se tenha subtraído a um posicionamento relativamente a Kant.

O próprio artigo primeiro da Lei Fundamental alemã - "A dignidade do homem é intocável" - é, ainda de acordo com Etienne François, claramente de inspiração kantiana. O pensamento kantiano surge como um elemento fundador no processo de construção europeia que coloca a dignidade humana, a reflexão e a ética no cerne dos seus objectivos. O projecto de Tratado Constitucional europeu reivindica também no seu preâmbulo o legado do Iluminismo."