quarta-feira, 11 de maio de 2022

Música no tempo do Padre António Vieira

Viajando por este século XVII português, cheio de contradições, vamos fazer uma breve incursão pela música, uma das formas artísticas mais antigas e, talvez, a mais universal.

 Não sabemos se o Padre António Vieira teria ouvido este vilancico barroco (forma poético-musical sacra da Península Ibérica) deste seu contemporâneo António Marques Lésbio.


Muito provavelmente, conhecer-se-iam. Terá sido António Marques Lésbio que compôs a música para o funeral do Padre António Vieira.

No século XVII, temos também grandes compositores de música polifónica como Frei Manuel Cardoso ou Frei Fernando de Almeida. Este último teve um fim trágico, ao ser preso em condições duríssimas e condenado pela Inquisição. Inquisição que também prendeu o Padre António Vieira, tendo este acabado por ser absolvido. Neste século XVII, este Tribunal da Igreja é uma sombra negra que paira sobre toda a sociedade portuguesa. 

Deixo aqui uma das composições musicais de Fernando de Almeida, "As Lamentações de Jeremias", que bem poderia ter sido ouvida pelo Padre António Vieira.
 



Vieira, contemporâneo de Descartes – os desafios da Modernidade (2)

(continuação)

Quem nunca se encantou com o arco-íris? 

Quem nunca contou sete cores no arco-íris?


Quem nunca sonhou ao olhar um arco-íris?


Mas o "mundo vivido", o mundo diverso e colorido do nosso quotidiano, não é o "mundo pensado", parafraseando Gaston Bachelard. E a ciência dá-nos uma visão nada colorida do arco-íris!!

Mas nem sempre foi assim.

No século XVII, já em 1681, o século de Descartes e de Vieira,  Bossuet, bispo e teólogo francês, refere-se-lhe como "um dos principais ornamentos do trono de Deus”. Bossuet partilha, ainda, a visão medieval e cristã do mundo. A Terra é o lugar que Deus destinou ao homem para sofrer e se redimir do pecado e é de uma composição diferente da composição etérea dos corpos celestes. A natureza, o céu, as estrelas são para contemplar e admirar como obra de Deus. 
Bossuet desconhece a visão da ciência moderna que encontramos na explicação que Descartes dá do arco-íris, em 1637. 

«Este filósofo e matemático apresentou em 1637, num apêndice ao famosíssimo Discours de la Méthode, uma descrição científica do arco-íris: este não era mais do que o resultado da refracção e da reflexão da luz solar em gotas de água na atmosfera. A luz solar batia na gota, desviava-se, reflectia-se no fundo da gota e voltava a desviar-se ao sair. Descartes foi, com o holandês Snell, o autor das leis da refracção, que descrevem matematicamente o desvio da luz quando passa de um meio para outro, no caso o ar e a água.» 

Em Portugal, António Vieira, Padre Jesuíta, situado entre dois mundos, o medieval e o moderno, mostra estar a par da leitura que a "filosofia moderna", a "nova filosofia", a "verdadeira filosofia", faz do fenómeno do arco-íris. 

“Na Íris ou Arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade de cores: e contudo ensina a verdadeira Filosofia que naquele Arco não há cores, senão luz, e água”.  (Vieira, 1645)

“Isto, que chamamos Céu, é uma mentira azul, e o que chamamos Íris ou Arco-celeste, é outra mentira de três cores”. (Vieira, 1651)

Mais tarde...

«Newton, que realizou experiências com prismas de vidro em 1666, explicará que o desvio da luz de um meio para outro se devia à diferente velocidade de diferentes partículas de luz nos dois meios. A luz solar é branca, mas, como a luz branca é feita de partículas correspondentes às diferentes cores, as cores apareceriam diferenciadas dentro da gota e, ainda mais, à saída dela.»

E Vieira, em 1669, partilhando a perspetiva cartesiana:

“O rústico, porque é ignorante, vê muita variedade de cores no que ele chama Arco-da-Velha; mas o Filósofo, porque é sábio, e conhece que até a luz engana (quando se dobra), vê que ali não há cores, senão enganos corados, e ilusões da vista”.

Comenta Fiolhais:

«Repare-se como é dada a primazia ao saber do “filósofo” (filósofo natural, entenda-se) em relação ao saber comum. Uma das marcas da ciência moderna é precisamente a ultrapassagem do senso comum: esta é ainda mais visível em Galileu e Newton do que em Descartes. O arco-íris é real, mas, para ele existir, têm de concorrer três coisas: a luz solar, as gotas de água e os olhos do observador. Cada observador terá sempre um arco-íris em torno de si, razão pela qual nunca poderá alcançar uma ponta.»

NOTA: Todas as citações são do artigo de Carlos Fiolhais, "Vieira e a Ciência", disponível em em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/41191/1/vieira_e_a_ciencia.PDF, consulta a 31 de março de 2022.


 


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Vieira, contemporâneo de Descartes – os desafios da Modernidade (1)

Este é o título que atribuímos à contribuição da disciplina de Filosofia para um projeto de articulação curricular com uma turma do 11º ano. Assim, vamos iniciar uma série de publicações que pretendem contribuir para os alunos formarem uma visão integrada de informação que recolheram em diversas disciplinas. 

O ponto de referência do projeto é o Padre António Vieira, essa figura maior da Cultura Portuguesa.


Estamos no século XVII, o século de Descartes, o século da Revolução Científica que destruiu a cosmovisão medieval e abriu as portas para pensar um Universo infinito, uma física matemática e toda uma nova mundividência. 
Na disciplina de filosofia, os nossos alunos foram levados a conhecer René Descartes e, também, a perceberem os processos de construção do conhecimento científico. Deste modo, cruzando filosofia do conhecimento e filosofia da ciência perspetivamos o saber e o conhecimento humanos de uma forma mais rica e englobante.

https://www.gettyimages.pt/fotos/ren%C3%A9-descartes


Algumas ideias que os alunos já conhecem das aulas de Filosofia

- Descartes, filósofo que viveu na primeira metade do século XVII (1596-1650), é um matemático, um cientista, um homem do seu tempo, que levou a cabo um projeto de construção de uma nova filosofia. O seu contributo é notável, tanto na matemática, com a descoberta da geometria analítica, como na filosofia, com a teoria do conhecimento e o racionalismo moderno.

- Descartes é participante deste movimento da ciência moderna, é contemporâneo de um dos vultos mais proeminentes da revolução científica do século XVII, Galileu Galilei (1564-1642) e, tal como ele, defensor do heliocentrismo... 

- A revolução científica do século XVII pode ser considerada um exemplo de alteração de paradigma, na análise e concetualização da história da ciência por T. Kuhn (1922-1996). 

Modelo geocêntrico 


Modelo heliocêntrico de Copérnico 
(https://www.goconqr.com/slide/11409275/hist-ria-da-astronomia)


Século XVII - Portugal e as novas ideias
Apesar de Portugal não ter tido expressão neste movimento e de as novas ideias terem feito um caminho lento e árduo em terras lusas, deu um contributo inestimável: a expansão portuguesa, a descoberta de que o mundo não era como os mapas antigos mostravam, destruiu o que se tomava há séculos como verdade. O mundo antigo ruía... O saber antigo baseado nos livros, nos textos aristotélicos e na Bíblia, revela-se inadequado, ocorre a valorização da experiência, do "saber de experiência feito", como diziam os nossos homens de quinhentos, como dizia Camões. Camões, o poeta que assistiu à gesta dos portugueses e à chegada por mar às misteriosas e ricas terras da Índia, escreveu os Lusíadas, a obra épica onde os portugueses se reveem. 
A descoberta de uma nova geografia, com os portugueses, a construção de um modelo heliocêntrico do cosmos, com Copérnico, ainda no século XVI, a descrição matemática das órbitas dos planetas em redor do sol, com Kepler, a observação da Lua, dos satélites de Júpiter e dos anéis de Saturno, a descoberta da lei da queda dos corpos por Galileu, na primeira metade do século XVII e, finalmente, a formulação da teoria da gravitação universal por Newton (1642-1727), já no final deste século, dão-nos um pouco a noção de quanto somos devedores ao século XVII.

No entanto, o século XVII português não participa ativamente neste movimento e novo ambiente intelectual. As novas ideias, filosóficas e científicas, farão um caminho difícil em Portugal. No entanto, há sinais deste novo tempo. Sinais que encontramos também no Padre António Vieira.

O texto de Carlos Fiolhais, "Vieira e a Ciência", serve-nos, agora,  de guia orientador. 
(disponível em https://eg.uc.pt/bitstream/10316/41191/1/vieira_e_a_ciencia.PDF, consulta a 31 de março de 2022)

"O Padre António Vieira viveu numa época de ouro da ciência, a época da revolução científica, na qual sobressaíam grandes nomes como René Descartes, Galileu Galilei e Isaac Newton. Não sendo um cientista, tanto pela preparação que adquiriu no Colégio da Baía, no Brasil (...) como pelas suas numerosas leituras durante a sua longa vida, estava a par da ciência do seu tempo. Aos seus conhecimentos científicos ia amiúde buscar exemplos que serviam o seu discurso catequético e profético."
                                                            (continua)