quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Sobre a Paz

Publicamos um dos cartazes elaborados por um grupo de alunos do 11º ano.

Olhe para este cartaz, leia as perguntas, aceite o desafio que lhe é lançado.

PREPARE-SE PARA RESPONDER!

 



Numa altura em que assistimos a situações de guerra, como as que decorrem na Europa e no Médio Oriente, a escolha feita por estes alunos parece-nos bem pertinente.

Afinal, que homens e mulheres somos nós, os que praticam atos de violência e morte, que homens e mulheres somos nós, os que assistimos, na tranquilidade do nosso sofá, à chacina de outros homens, de outras mulheres, como nós?

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA na MT - É na escola que aprendemos o valor do pensamento

A aventura intelectual que a ciência e a filosofia representam teve início por volta do século VII a. C., na Grécia Antiga, num ambiente de relativo bem estar económico, paz e liberdade de pensamento. Hoje, tal como ontem, a ciência e a filosofia alimentam-se da liberdade e, ao mesmo tempo, preservam-na. Nenhum processo de investigação - científica, filosófica, política ou religiosa - pode dispensar o diálogo no qual as ideias se abrem ao confronto, à expressão pública, à exigência de clarificação e de avaliação do seu alcance e limites. Não é por acaso que todos os autoritarismos se dão mal com a liberdade de pensamento, seja qual for o seu lugar de origem.

É também na escola que aprendemos o valor do pensamento e que desenvolvemos a capacidade de viver em conjunto. A escola continua a ser esse lugar «onde se aprende a discutir, a aceitar a opinião divergente, a combater com argumentos, por exemplo, em vez de ser com insultos», nas palavras do filósofo Eduardo Lourenço (ver aqui publicação de 16 de abril de 2015, etiqueta Filósofos portugueses). É também sob esta inspiração que temos vindo a celebrar, de há muito e sob diversos modos, o Dia Mundial da Filosofia na nossa escola. 

 

FILOSOFIA HOJE - Byung -Chul Han, A dominação torna-se completa no momento em que se apresenta como liberdade

Byung-Chul Han, Filósofo norte-coreano (radicado em Berlim), n. 1959

Somente um regime repressivo provoca a resistência. Pelo contrário, o regime neoliberal, que não oprime a liberdade, e sim a explora, não enfrenta nenhuma resistência. Não é repressor, e sim sedutor. A dominação torna-se completa no momento em que se apresenta como a liberdade.

O romance 1984 de George Orwell transformou-se há pouco tempo num sucesso de vendas mundial. As pessoas têm a sensação de que algo não anda bem com nossa zona de conforto digital. Mas nossa sociedade se parece mais a Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Em 1984 as pessoas são controladas pela ameaça de serem machucadas. Em Admirável Mundo Novo são controladas pela administração de prazer. O Estado distribui uma droga chamada “soma” para que todo mundo se sinta feliz. Esse é nosso futuro.

Na depressão perdemos a relação com o mundo, com o outro. E afundamo-nos num ego difuso. Penso que a digitalização, e com ela o smartphone,  transformam-nos em depressivos. Há histórias de dentistas que contam que seus pacientes se agarram-se aos seus telefones quando o tratamento é doloroso. Por que o fazem? Graças ao telemóvel sou consciente de mim mesmo. O telemóvel ajuda-me a ter a certeza de que vivo, de que existo. Dessa forma agarramo-nos ao celular em situações críticas, como o tratamento dentário. Eu lembro-me que quando era criança apertava a mão da minha mãe no dentista. Hoje a mãe não dá a mão à criança, e sim o telemóvel para que se agarre a ele. A sustentação não vem dos outros, e sim de si mesmo. Isso adoece-nos. Temos que recuperar o outro.

Excertos da entrevista dada ao jornal El País, em 9 de out. 2021

Consultável, aqui: Byung-Chul Han: “O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário” | Cultura | EL PAÍS Brasil (elpais.com)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

FILOSOFIA HOJE - José Barata-Moura, Traços do Pensar Filosófico

 

 


Criticar não é dizer-mal; é procurar ver bem. Tão-pouco criticar é contrapôr, de um modo abstrato e mecânico, enunciações que entre si se excluem. (…) A crítica é um exame: um fazer passar pelos crivos da racionalidade, e do discernimento, tudo aquilo que imediatamente se nos apresenta (…) como inquestionável.

Há que cuidar de um estabelecimento correto dos problemas. A labuta do pensar não visa simplesmente as respostas que, em prémio, hão-de obter-se. Precisa de madrugar. Começa mais cedo. Pela elaboração dos questionários. As «soluções» não caem do céu. De paraquedas. Por inspiração funda de alguma corrente de ar benfazeja. Rodopiando no espirro incandescente de uma revoada de luz, ou no piar de um passarinho. As vias resolutórias engendram-se, surgem, e transpiram, de dentro de uma problemática que lhes define um horizonte. Confirma-se que os filósofos parecem ter predileção pelo acionamento de uma estranha maquineta que dá pelo nome sugestivo de «complicómetro». Mas não é porque eles estejam possuídos por uma indebelável mania de ensarilhar os lotes. O sarilho está metido no próprio enredamento das coisas. E para desenvencilhar é preciso trazê-lo à mastigação do pensamento.

Texto completo aqui:

Philosophica 45 r.indd (ul.pt)

FILOSOFIA HOJE - Markus Gabriel, "Precisamos de mais filosofia no espaço público"

No dia em que se celebra o Dia Mundial da Filosofia, publicamos alguns textos de filósofos contemporâneos.


O filósofo alemão Markus Gabriel (n.1980)

Precisamos de um pensamento bem informado, estruturado, e que não seja o pensamento do “especialista”. Esse pensamento é o da filosofia. De certa maneira, todos os seres são filósofos, mas não sabem. Todos querem saber se somos agregados de célula ou imortais. Essas questões a respeito de quem somos são filosóficas. Precisamos é de mais filosofia no espaço político.

Mas na filosofia trata-se de uma reflexão que, em princípio, não tem nenhuma meta além da reflexão, trocar ideias em torno de uma questão sem querer nada com isso, o que é um conceito importante da liberdade: a ideia de um pensamento sem fim que nos liberta, que produz conhecimento e autoconhecimento. É uma forma de liberdade e de resistência. Por isso o grande génio da Filosofia, Sócrates, resistiu ao sistema político da democracia grega ao insistir que ele não sabia nada.

Um critério para uma sociedade mais justa deveria incluir o direito humano a ter tempo na vida para discutir a questão de quem somos. Quem não tem sequer tempo para isso jamais poderá viver uma “boa vida”. Para mim é um imperativo categórico que haja espaço de educação e reflexão para todos. Sou universalista radical nesse sentido. Mas é difícil chegar com os pressupostos económicos em vigor.

Excertos de uma entrevista ao Jornal Globo, que pode ser vista aqui: 

'A ideologia é de um tipo de fim do mundo', diz o filósofo Markus Gabriel - Jornal O Globo

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA NA ESMT

Abrimos este ano letivo no nosso blogue com o Dia Mundial da Filosofia!

De novo, o nosso cartaz! Já afixado nos locais habituais... Junto à Sala de Professores, na Sala de Professores e na Biblioteca da nossa escola.

Por toda a escola estão cartazes elaborados pelos nossos alunos, assinalando este dia. 

Esta exposição irá permanecer por uma semana. 


ESCOLA SECUNDÁRIA DE MADEIRA TORRES

Grupo Disciplinar de Filosofia e BEMT

16 de novembro de 2023

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

Instituído em 2005 pela Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO), o Dia Mundial da Filosofia é celebrado todos os anos na terceira quinta feira do mês de novembro. Tem vindo a ser comemorado na nossa escola desde 2006.


Labirinto do minotauro na Casa dos Repuxos em Conímbriga

Divulgação de trabalhos dos alunos. 




quinta-feira, 22 de junho de 2023

A Política Contada aos Jovens...

Os alunos do 12º ano, Curso de Línguas e Humanidades, da disciplina de Ciência Política, sob responsabilidade dos professores Kelly Marques e Carlos Reis, tiveram a oportunidade de assistir ao Colóquio "Quem pertence à Europa?", cuja oradora foi a doutoranda em Ciência Política, Corina Lozovan. A atividade teve lugar no Anfiteatro da nossa escola e foi realizada em parceria com o programa "Política Contada aos Jovens" do Espaço Primavera da CMTV. 

https://www.youtube.com/watch?v=ASeNeLm8SgE&t=94s 


Debate Eutanásia (9) - Argumentos válidos ou falácias?

Em qualquer debate argumentativo é importante estar atento para distinguir os argumentos válidos dos argumentos falaciosos, aqueles que aparentam ter valor mas não o têm. As falácias podem ser usadas intencionalmente com o simples objetivo de vencer a tese do adversário ou podem ser falhas do raciocínio de que o sujeito não se dá conta. Quer num caso, quer noutro, as falácias dificultam o prosseguimento do debate racional, introduzindo um fator que confunde, tira condições de esclarecimento do problema e de obtenção de um consenso. 


A propósito do debate na sociedade portuguesa com expressão no espaço público, publicamos um artigo do médico neurologista Rosalvo Almeida, membro do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida), «O Espantalho e outras falácias», que aponta um conjunto de falácias (todas conhecidas dos nossos alunos) detetadas na discussão sobre a eutanásia. Este artigo foi publicado a 5 de setembro de 2016.

O espantalho e outras falácias

No debate sobre a despenalização da ajuda à antecipação da morte quando pedida por pessoa maior de idade em sofrimento devido a doença incurável ou irreversível (defendida sem ambiguidades em artigos meus neste jornal, “O horror do absoluto” em Julho e “Em defesa dos cuidados paliativos” em Abril, assim como em textos de outros) temos visto que há quem persista em considerar que é justo condenar à prisão quem, em determinadas condições, satisfaça tais pedidos.

O espantalho e outras falácias

Tal como no passado, muitos confundem o objectivo da despenalização com a bondade do acto a despenalizar. Ou seja, posso não concordar com o recurso à interrupção voluntária de uma gravidez mas não me atribuo o direito de castigar quem o faça, em determinadas condições. No caso presente, posso não satisfazer um pedido de ajuda à antecipação da morte que me seja dirigido mas não me autorizo a punir quem o faça, em determinadas condições. Penalizar, como prevê hoje o Código Penal, proíbe mas despenalizar não obriga.

O argumentário usado pelas partes resvala frequentemente para falácias que todos devemos evitar.

Dizer que modificar uma lei para despenalizar um acto, em determinadas condições, é pôr o Estado a realizar esse acto consubstancia a conhecida falácia do ‘espantalho’ – é deturpar o argumento do adversário para ser mais fácil atacá-lo. Exagerar ou distorcer o que outrem afirma faz parecer que a própria posição é razoável, mas isso no final descredibiliza o debate racional e sério.

Perguntar se o Estado “deve promover a morte dos cidadãos que queiram pôr termo à sua vida” ou “pode decidir que vidas têm ou não dignidade” é utilizar outra falácia – a ‘pergunta capciosa’. A pergunta ardilosa tem uma presunção incluída de modo a que não possa ser respondida sem sensação de culpa. Mas a resposta é claramente: não!

Se, em vez de defendermos a nossa posição, desqualificássemos o opositor à nossa proposta, estaríamos, como foi feito, a recorrer à falácia ‘ad homineme perderíamos a razão.

O Estado que legisla sobre as condições em que tais actos não serão crime não está a promover o homicídio. Dizer isso é ameaçar com a falácia da ‘rampa escorregadia’.

Dizer que os cuidados paliativos conseguem evitar sempre e sempre o sofrimento da pessoa doente é ‘tomar a parte pelo todo’ – outra falácia.

Não creio que se justifique continuar a malhar em ferro frio. Os dados estão lançados. Pressente-se que, na sociedade dos nossos dias, cresce o número dos que concordam com a despenalização da morte ajudada ou suicídio assistido, em determinadas condições.

É hora de os legisladores sentirem essa mudança de perspectiva nos portugueses. Cabe, agora, aos deputados tomarem iniciativas legislativas concretas que definam as condições em que não há lugar a pena de prisão para os profissionais de saúde que, em consciência, procedam com compaixão e evitem somar sofrimento ao sofrimento. O dever de bem assistir à pessoa doente não implica o afastamento do direito à objecção de consciência.

Disponível em O espantalho e outras falácias | Opinião | PÚBLICO (publico.pt). Consulta em 22 de junho 2023.





Debate Eutanásia (8) - A lei e o indivíduo

A área jurídica e a área filosófica, a política e a ética, a lei e a moral são alvo de muitas interseções, mantendo-se, no entanto os seus campos diferenciados de análise e de abordagem dos problemas. No debate político sobre a eutanásia foram esgrimidos argumentos de caráter ético, filosófico e religioso e o facto de ter vingado uma determinada decisão. que o solucionou do ponto de vista legal, não lhe retira a complexidade e a continuidade como problema ético e filosófico. A consciência e as decisões morais estão na dependência do individuo, seja qual for a circunstância. Isto significa pelo menos duas coisas: se a lei obriga, o indivíduo pode desobedecer, caso considere a lei injusta e violadora da sua consciência moral; se a lei não obriga e apenas permite, o que é o caso da lei da Eutanásia, isso em nada obriga o indivíduo. Na primeira situação, podem ocorrer consequências danosas para o indivíduo. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Cônsul Aristides Sousa Mendes, Cônsul em Bordéus na altura da perseguição aos judeus pelo regime nazi, que desobedeceu a ordens do regime fascista português de Oliveira Salazar. Desobedecendo, Aristides Sousa Mendes passou vistos a judeus para saírem do país e, deste modo, salvou-lhes a vida. Desobedecendo, perdeu a sua carreira e retornou a Portugal sem honra nem glória. Na segunda situação, em que nos referimos à lei que permite, podemos simplesmente dizer que o facto de a eutanásia ser permitida não me obriga, a mim, caso me venha a encontrar em qualquer das situações previstas na lei, a socorrer-me dela se a minha consciência o recusar. O mesmo ocorre com a lei da interrupção voluntária da gravidez, para utilizarmos outro exemplo. 

Qualquer decisão tem por base valores que a sustentam. Podemos considerar que o valor político que foi considerado na aprovação da lei da eutanásia em Portugal foi o da liberdade individual. O indivíduo é considerado detentor da sua vida, podendo fazer dela o que considerar melhor, incluindo o de tomar uma decisão sobre o seu fim. Ao Estado não cabe sobrepor-se à vontade individual, mas criar as condições para o seu exercício.

Quando lidamos com o princípio ou com o fim da vida não há nada que seja simples. Essas são as questões mais radicais da existência humana e mobilizam crenças, princípios e valores que atravessam qualquer discussão. É papel da filosofia elucidar conceitos e investigar de forma analítica e racional as diversas perspetivas sob as quais um problema pode ser abordado. Este é apenas um modo de o perspetivar. 



Debate Eutanásia (7) - O problema moral, alguns esclarecimentos para um debate

Do grego eu, que significa bem e thanatos, que significa morte, a palavra eutanásia significa “boa morte” ou “morte feliz” porque é uma “morte feliz” para quem morre, ou seja, é uma morte benéfica para o paciente. Daqui podemos inferir que a eutanásia consiste em provocar, intencionalmente, a morte de um determinado indivíduo para seu benefício. Porém, importa salientar que a forma como a morte do paciente é provocada pode ser efetivada de duas maneiras diferentes: tomando medidas ativas ou passivas. No primeiro caso, estamos a falar de eutanásia ativa porque são tomadas medidas ativas – como, por exemplo, uma injeção letal – que matam o paciente. Por outro lado, no segundo caso, estamos a falar de eutanásia passiva porque são tomadas medidas passivas - como, por exemplo, a omissão do uso do suporte de vida do paciente - com a finalidade de o deixar morrer. Tal como podemos sintetizar através das palavras de Pedro Galvão:

“Outra distinção entre tipos de eutanásia, independentemente daquela que respeita à vontade do paciente, é a que separa a eutanásia ativa da passiva. Na primeira, a morte ocorre em virtude de algo que o agente faz: ele mata o paciente. Na segunda, o agente limita-se a deixar morrer: a morte do paciente resulta de uma simples omissão.” (Galvão 2015: 49).

Reconhecendo, por um lado, que o problema ético da eutanásia não se esgota nesta distinção e, por outro lado, de forma a esclarecer conceitos essenciais que estarão na base do debate a realizar, urge a necessidade de compreendermos os diversos tipos de eutanásia: eutanásia voluntária ativa; eutanásia involuntária ativa; eutanásia não voluntária ativa; eutanásia voluntária passiva; eutanásia involuntária passiva; eutanásia não-voluntária passiva. Comecemos por salientar a principal diferença:

“(...) a eutanásia voluntária: aquela que é praticada a pedido do paciente ou, se ele já não for capaz de exprimir a sua vontade, de acordo com as instruções que deixou quando era competente para decidir o curso da sua vida.” (Ibidem)

Do grego voluntas, que significa vontade, o adjetivo voluntário qualifica algo que é realizado de livre vontade e, como tal, a eutanásia voluntária verifica-se quando o paciente está em sofrimento e pede, voluntariamente, que o “matem” (eutanásia voluntária ativa) ou que o “deixem morrer” (eutanásia voluntária passiva). Inversamente, temos a considerar a:

“eutanásia não-voluntária, que se aplica àqueles que, sem terem deixado instruções relevantes, perderam a capacidade de entender a escolha entre a vida e a morte – ou que, como no caso dos recém-nascidos, nunca chegaram a ter essa capacidade.” (Ibidem).

Assim, a eutanásia não-voluntária consiste em “matar” (eutanásia não-voluntária ativa) ou “deixar morrer” (eutanásia não-voluntária passiva) um determinado paciente que não está em condições de expressar a sua vontade, nem de efetivar o seu consentimento devido ao facto, por exemplo, de estar em coma. Relativamente à eutanásia involuntária “(...) o paciente é capaz de entender a escolha entre a vida e a morte, mas é morto contra a sua vontade ou sem lhe ter sido dada a oportunidade de a exprimir.” (Ibidem). Neste caso, podemos afirmar que esta consiste em “matar” (eutanásia involuntária ativa) ou “deixar morrer” (eutanásia involuntária passiva) um determinado paciente contra a sua vontade, no sentido em que este estava em condições de dar ou recusar o seu consentimento, no entanto, não lhe foi dada a oportunidade de o expressar. Optámos por estabelecer a distinção entre os vários tipos de eutanásia porque, antes de partirmos para o debate sobre o problema fundamental, é preciso que estejamos familiarizados não só com os conceitos básicos que lhe estão associados, mas também com os valores que a prática da eutanásia poderá colocar em causa.

A questão-chave em torno da qual girará o debate é a seguinte: «Será a eutanásia voluntária moralmente permissível?» Iremos, portanto, refletir sobre a eutanásia voluntária, isto é, a eutanásia que é praticada a pedido dos pacientes, especificamente os que sofrem de doenças terminais ou que estão num estado permanente de dor e sofrimento irremediável, e que querem por termo à vida para o seu próprio bem.

Neste contexto, levantámos algumas questões-problema orientadoras da discussão: “Será moralmente permissível que os indivíduos, especificamente os doentes terminais com dores físicas e sofrimento emocional insuportáveis, acabem com as suas vidas?”; “Se sim, será aceitável que o façam recusando, apenas, o tratamento médico que sustenta as suas vidas ou tomando medidas ativas para se matarem?”; “Se for permissível tomarem medidas ativas para se matarem, será moralmente aceitável pedirem a outros – por exemplo, aos médicos – para os auxiliarem na concretização dessa ação?”; “Será moralmente aceitável aceder a esse pedido?”

(Texto e atividade sob responsabilidade da professora Lúcia Silva)

Pedro Galvão, Ética com Razões, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015


Debate Eutanásia (6) - Portugal legalizou a eutanásia em maio de 2023

Carlos Pombo, 2009 (Do site oficial do Parlamento Sala das Sessões (parlamento.pt)

A decisão da Assembleia da República baseia-se em princípios filosófico-jurídicos que privilegiam o valor da liberdade individual em detrimento de outros. A existência de uma lei que torna legal a eutanásia não interfere na esfera privada onde são tomadas as decisões individuais. A lei permite, mas não obriga.

Que esta questão não tem nada de simples, sabemo-lo. E sabemos também que da teoria à prática vai um longo caminho. 

Porque nos pareceu útil para enquadramento deste problema, transcrevemos do dossier "Eutanásia e Suicídio Assistido" publicado no site do Parlamento (60-04-2022.pdf (parlamento.pt).

«A abordagem dos assuntos tratados, baseando-se em legislação e noutra documentação técnica, é fundamentalmente jurídica, como não poderia deixar de ser, e o objeto do estudo é delimitado pelas condutas da eutanásia ativa e do suicídio assistido. Trata-se de temas muito controversos e delicados. O sentido com que as legislações se orientam é fortemente influenciado por diversos fatores de ordem social, religiosa, histórica, ética, moral, filosófica e até, por muito que nos choque, eugénica e meramente económica. 
A favor da eutanásia estão os que acreditam no seu significado como caminho para evitar a dor e o sofrimento de pessoas em fase terminal ou sem qualidade de vida, um caminho consciente que reflete uma escolha informada. Realçam a defesa da autonomia absoluta de cada indivíduo, do direito à autodeterminação, do direito à escolha pela sua vida e pelo momento da morte e da prevalência do interesse individual acima do da sociedade, com primazia da proteção da vida. A eutanásia não defende a morte, mas a escolha da morte por quem a concebe como a melhor opção. Por isso, a escolha da morte não pode ser irrefletida. As componentes biológicas, sociais, culturais, económicas e psíquicas têm de ser avaliadas, contextualizadas e pensadas, de forma a assegurar a verdadeira autonomia do indivíduo que, alheio a influências exteriores à sua vontade, certifique a impossibilidade de arrependimento. 
Contra a eutanásia são esgrimidas razões de natureza religiosa, ética, política e social. Designadamente na ótica religiosa, a eutanásia é vista como usurpação do direito à vida humana, que só a Deus pertence. Na perspetiva da ética médica, há quem realce o dever de acatar o juramento de Hipócrates, que vincula os profissionais de saúde ao respeito pela vida do paciente. »

Debate Eutanásia (5) - Alguns esclarecimentos da questão do ponto de vista legal

A morte assistida era crime em Portugal?

Em Portugal, a morte assistida não estava designada como crime. Mas a sua prática podia ser punida por três artigos do Código Penal: homicídio privilegiado, homicídio a pedido da vítima e crime de incitamento ou auxílio ao suicídio.

É no sentido de despenalizar quem pratica a morte medicamente assistida em certas condições que PS, BE, PAN e IL apresentaram os seus projetos. 

Fonte: https://rr.sapo.pt/noticia/politica/2022/06/09/eutanasia-o-que-ha-de-novo-agora-no-parlamento/287817/

Quais as principais características dos projetos de PS, BE, IL e PAN?

Os quatro projetos retiram a exigência de "doença fatal" como critério para a despenalização da morte medicamente assistida face ao último texto final aprovado pelo parlamento em novembro do ano passado, que acabou vetado.

PS, BE e Iniciativa Liberal propõem a eutanásia em situações de "lesão definitiva de gravidade extrema" ou "doença grave e incurável". Quanto a este último critério, o PAN estabelece a exigência de "doença grave ou incurável".

Todos estabelecem que a morte medicamente assistida tem de ocorrer "por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável".

Em que condições pode o doente pedir a interrupção do processo?

Os quatro projetos preveem que o processo para a morte medicamente assistida é interrompido se quem o pediu ficar, entretanto, inconsciente.

É ainda garantido que a "decisão do doente em qualquer fase do procedimento clínico de antecipação da morte é estritamente pessoal e indelegável".

É feita alguma avaliação psiquiátrica no processo?

Se for considerado necessário, sim. Todos os projetos estabelecem que, após um parecer positivo de um médico orientador e uma confirmação feita por um médico especialista na patologia que afeta o doente, pode ser feita uma confirmação por um psiquiatra.

É obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria, sempre que "o médico orientador e ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida revelando uma vontade séria, livre e esclarecida" ou "admitam que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões".

Há casos de portugueses que optam pela eutanásia no estrangeiro?

Sim. Não há números oficiais, mas sim parcelares. De 2009 a 2020, oito portugueses foram morrer à Suíça, apoiados pela Dignitas, uma associação sem fins lucrativos que "ajuda pessoas a morrer com dignidade". Há mais 25 pessoas com residência em Portugal inscritas na associação.

Em setembro de 2020, numa altura em que se debatia de novo a eutanásia, a RTP exibiu uma reportagem com um cidadão português, Luís Marques, 63 anos, paraplégico há 55, que optou por viajar até à Suíça para recorrer à associação Dignitas e morrer por suicídio assistido, que legalmente lhe era negado em Portugal. Foi o oitavo português a fazê-lo nesta associação. 

Fonte: https://www.dn.pt/sociedade/-eutanasia-13-questoes-sobre-a-morte-medicamente-assistida-14924907.html

(Este texto é da responsabilidade da professora Lúcia Silva)

terça-feira, 20 de junho de 2023

Debate Eutanásia (4) - A legalização da eutanásia em Portugal: um pouco de história

De 1995 a 2023: a história da eutanásia em Portugal

votação no parlamento de quatro projetos de lei deu-se a 9 de dezembro, mas a discussão sobre a eutanásia não é recente em Portugal. Em 1995, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu um parecer de forma a haver uma discussão sobre o tópico e clarificar alguns conteúdos.
Dezassete anos depois, em 2012, foram apresentadas 5 propostas sobre o testamento vital, com o intuito de garantir a autodeterminação individual para tomada de decisão acerca dos cuidados de saúde a que o indivíduo se quereria, ou não, submeter em caso de doença incapacitante. Acabando por ser legalizado, foi um marco importante para a discussão em Assembleia sobre a morte medicamente assistida, que se daria nos anos seguintes.
O movimento cívico “Direito a Morrer com Dignidade”, fundado em 2015, apresentou um ano mais tarde um manifesto onde defendia a urgência da despenalização e regulamentação da morte medicamente assistida, assinado por várias personalidades políticas. Entregou no mesmo ano uma petição que conseguiu mais de oito mil assinaturas, o que fez com que novas petições, tanto contra como a favor, fossem entregues ao longo do ano seguinte.
A 29 de maio de 2018, as propostas sobre a despenalização da morte medicamente assistida apresentadas por BE, PS, PAN e PEV foram chumbadas, o projeto de lei socialista foi o que esteve mais perto de ser aprovado, com 110 votos a favor e 115 contra. Ficou prometido pelos líderes do BE e PAN que trariam novamente o tema aquando da nova legislatura.
Um ano e meio mais tarde os mesmos quatro partidos, mais a IL, apresentaram novamente propostas sobre a eutanásia e o parlamento aprovou as cinco iniciativas legislativas. A votação final global só aconteceu no fim de janeiro de 2021, onde 150 dos 230 deputados e as não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram a favor, sendo aprovada a lei da eutanásia em Assembleia. O PR vetou o decreto do parlamento, afirmando que diferentes artigos tinham “insuficiente densidade normativa”.
Cavaco Silva e Passos Coelho vieram a público mostrar-se contra a despenalização da eutanásia e consideraram que a tentativa de legislação por parte da esquerda foi feita de forma leviana.
Após este chumbo, vários deputados aperfeiçoaram a proposta que tinha sido rejeitada, contornaram as falhas que Marcelo Rebelo de Sousa tinha apontado, baseando-se na lei espanhola que tinha sido aprovada nesse ano após 4 tentativas falhadas. A 5 de novembro, foi aprovado pelo Parlamento o decreto, mas a 29 do mesmo mês, a lei foi novamente vetada, com a solicitação que fossem clarificadas contradições no diploma entre “doença só grave”, “doença grave e incurável” e “doença incurável e fatal”.
Na última versão, apresentada este ano, vários conceitos foram reformulados, como a possibilidade de acompanhamento psicológico durante o processo, a exigência de prazo de dois meses entre o pedido e a concretização da eutanásia e a não exigência de doença fatal, o que previamente foi um problema apontado por Marcelo.
Parlamento disponibilizou uma página com o histórico legislativo da morte medicamente assistida e um dossiê de legislação comparada com outros países do mundo.

Retirado de: De 1995 a 2023: a história da eutanásia em Portugal – APA (apartidaria.pt)

Eutanásia e Suicídio Assistido 60-04-2022.pdf (parlamento.pt)

Kant aos olhos dos nossos alunos... É possível uma ética exclusivamente racional? (2)

As tomadas de posição dos nossos alunos relativamente às objeções à ética kantiana (cont.)


É possível uma ética exclusivamente racional?


3. Texto de L. R. 10º ano A.

Uma das maiores críticas à ética kantiana é o facto de esta não deixar espaço para sentimentos – se uma ação for praticada por compaixão, por exemplo, não pode possuir valor moral, pois a vontade do agente é heterónoma, possuindo uma chamada "inclinação imediata".  


Eu concordo com esta crítica, pois acho que os sentimentos possuem

um grande papel na formação da intenção das pessoas. Pessoas com empatia e compaixão irão realizar um maior número de boas ações,

pois conseguem-se meter no lugar do outro, que pessoas egoístas e

egocêntricas, que apenas pensam nelas mesmas. Consigo compreender Kant, na medida em que ele defende que ações guiadas por sentimentos não são propriamente ações livres; apenas ações com caráter heterónomo, ou seja, ações com uma intenção que ‘’não é nossa’’. Mas várias perguntas levantam-se. E se conseguirmos controlar os nossos sentimentos? Não pergunto no sentido de escolhermos quando estamos felizes ou quando estamos tristes, mas sim se teremos alguma maneira de nos desenvolver com uma personalidade mais empática. Se encontrarmos esta maneira, a parte em que Kant defende que a intenção sentimental não é característica de ações moralmente corretas ficaria errada ou incompleta. Ao desenvolvermos o nosso raciocínio de maneira a que este possua uma maior empatia e compaixão pelo outro, iríamos, certamente, criar um maior número de situações em que a ação seria uma boa ação, praticada certamente a partir de sentimentos e da empatia recentemente desenvolvida.  

Podemos verificar que, em diversas escolhas, uma pessoa empática e com compaixão provavelmente realizaria o maior número de ações corretas relativamente a uma pessoa sem estas emoções presentes, não indicando que esta última é menos inteligente ou que tem uma menor preocupação com o dever que a primeira, necessariamente.  

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Assim, apesar de concordar com muitas ideias defendidas por Kant, não consigo concordar com a desvalorização que a sua teoria dá às emoções. 

Kant e o imperativo categórico

Richard Osborne, Filosofia para Principiantes, Lisboa, Ed. Presença, 1997, p.113.


O imperativo categórico [imperativo universal do dever] é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.
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2) Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda consciência de perguntar a si mesma: Não é proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? admitindo que se decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedir emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá. Este princípio do amor de si mesmo ou da própria conveniência pode talvez estar de acordo com com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é de saber se é justo. Converto assim esta exigência de amor de si mesmo em lei universal e ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha máxima se tornasse em lei universal? Vejo então imediatamente que ela não poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que permitisse a cada homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à ideia com a intenção de o não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos enganos.
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Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral.

Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. de Paulo Quintela, Coimbra, Atlântida Ed., 1960, pp. 56-60.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Kant aos olhos dos nossos alunos... Afinal, Kant é consequencialista? (1)

As tomadas de posição dos nossos alunos relativamente às objeções à ética kantiana. 


Afinal, Kant é consequencialista?

1. O texto de M.M. do 10ºA.

Uma das objeções a Kant é que o imperativo categórico é consequencialista, o que não concorda com a posição deontológica da ética de Kant. Esta crítica diz que universalizar a máxima da ação e pensar no que aconteceria se toda a gente praticasse essa máxima é um ato consequencialista.
Concordo com esta objeção, pois se pensarmos no que a universalização realmente faz é pensar e ter em conta o que aconteceria se toda a gente realizasse essa máxima. Logo, a universalização da máxima analisa as consequências, os resultados que teriam as ações de todos os humanos se seguissem tal máxima, agora transformada em lei.
Mas, por outro lado, pelo lado de Kant, a universalização de uma máxima não tem o objetivo de analisar as consequências das ações, de ser consequencialista. A universalização da máxima tem como objetivo fazer refletir a quem se está a questionar se quereria viver num mundo onde toda a gente realizasse essa máxima. Então, sendo assim, o imperativo categórico, mais especificamente a fórmula da universalidade não se foca nos resultados das ações da máxima universalizada, mas de alguma forma os resultados e consequências dessas ações estão subentendidos nessa universalização. Por isso, concordo com esta objeção.

2. O texto de B.F. do 10ºA

Kant diz ser contra o consequencialismo, mas a verdade é que quando aplicamos o imperativo categórico estamos a dar foco às consequências que as nossas ações podem desencadear.
Quando pensamos na máxima da nossa ação como regra universal  estamos a fazer uma previsão dos resultados que esta teria quando aplicada por todos. 
Na minha opinião, esta objeção mostra que é muito difícil tomar decisões sem ter em conta as suas consequências. Por exemplo, Kant considera "não mentir" um dever absoluto, ou seja, independentemente da situação em que o agente se encontra, nunca deve mentir. Porém, antes de Kant definir o ato de mentir como errado, o mesmo teve de aplicar a fórmula do imperativo categórico (fórmula da universalidade) e imaginar um mundo em que todos os seus habitantes fossem livres de mentir. (...)
Concluindo, ao aplicar o imperativo categórico para determinar se uma ação é ou não correta segundo a ética de Kant, estamos a ponderar se as consequências seriam boas ou não (racionais) quando universalizadas, logo a ética de Kant é consequencialista. 


quarta-feira, 10 de maio de 2023

Redes internacionais compram e vendem crianças para as obrigar a mendigar

A escravatura foi abolida? Foi.  Até que tal acontecesse houve muito sangue, dor e sofrimento. Aos nossos olhos, a escravatura do passado, aceite social e politicamente, é uma mancha nas páginas da nossa história.

E, no entanto...

As modalidades de exercício de domínio e violência de seres humanos sobre outros seres humanos continuam a fazer parte de uma sociedade que pensámos ter evoluído moralmente e na qual práticas de tráfico de seres humanos e de escravidão seriam impensáveis. Mas a realidade não é essa. Se, no plano teórico e legislativo, incorporámos os princípios consignados na Declaração dos Direitos Humanos, no plano da prática estamos muito longe deles. 

Esta notícia não se refere a um país longínquo, este país é aquele onde vivemos.



«Existem redes internacionais a comprar crianças para as forçar a mendigar nas ruas. Estas redes pagam entre mil e dois mil euros às famílias das crianças e, em seguida, força os menores a angariar um mínimo diário de 30 euros através da mendicidade. Este é um fenómeno que, segundo o “Jornal de Notícias”, tem aumentado em Portugal.

Num caso descrito pela publicação, uma criança romena de 10 anos foi vendida duas vezes pela mãe, tendo ido primeiro para a Irlanda e depois para Portugal. Em território nacional, a criança foi obrigada a casar, transformada em escrava doméstica e era ainda forçada a roubar e mendigar à porta de supermercados. Ao fim de cinco anos, foi resgatada da família que a maltratava no Porto.

O inspetor-chefe da PJ que investiga o tráfico de seres humanos, Sebastião Sousa, indica que a mendicidade forçada não é um fenómeno novo mas que a “globalização veio trazer novos contornos e novas oportunidades” às redes de tráfico. “As redes internacionais, sobretudo provenientes da Roménia e Bulgária, aproveitaram a integração destes países na União Europeia para circularem livremente pelo Espaço Schengen. Estas redes tiveram o seu apogeu até 2018 e recuaram com a pandemia”, explica o inspetor que lidera a brigada da Diretoria do Porto.

O “JN” indica que as vítimas de escravidão são obrigadas a pedir à porta de igrejas e de supermercados, sendo que quanto maior for a degradação da vítima, maior é o lucro para a rede e família envolvida.»

domingo, 23 de abril de 2023

Hannah Arendt - O Filme




Num tempo em que a informação falsa circula facilmente e em que somos bombardeados por notícias recebidas pelos mais variados meios, é cada vez mais necessário estarmos atentos e desenvolvermos uma atitude distanciada, de análise racional de todas as notícias e informação. Só uma atitude crítica nos pode precaver contra os excessos e abusos de poder, contra a propaganda e os mecanismos de manipulação que pretendem tolher a capacidade de pensarmos por nós próprios e de nos afirmarmos como cidadãos conscientes, ativos e intervenientes num mundo que é de todos e, por isso, é nosso também. 

Já aqui temos abordado muitas vezes a filósofa Hannah Arendt, cujo pensamento mantém uma atualidade, quase que diríamos, assustadora. Hanna viveu no período da Alemanha nazi, era judia, teve de sair da Alemanha, primeiro para França e depois para os Estados Unidos da América em 1941. Foi neste país que desenvolveu atividade jornalística e académica, tendo obtido cidadania americana dez anos depois, em 1951. 


Hannah Arendt em 1949

Um dos seus conceitos filosóficos mais fecundos é o de "banalidade do mal". Este conceito é forjado para responder ao desafio de entender como é que "pessoas normais" poderiam ter participado, sob formas diversas, no horror dos campos de concentração. Como é que pessoas normais, com um quotidiano banal, levando vidas sem nada de extraordinário poderiam, pelo silêncio, pela obediência, pela passividade ou alheamento, terem sido cúmplices da barbárie nazi. Quando os seres humanos deixam de pensar por si próprios, de se interrogar sobre o mundo no qual vivem, quando se tornam meros executantes de ordens e, por isso, delas se desresponsabilizam, tornam-se menos humanos e mais robots. As fronteiras entre o bem e o mal esbatem-se, a responsabilidade pessoal desparece e, quando isso acontece, o mal pode espalhar-se e ninguém estranha, tornou-se normal e habitual. 

Em 2012 estreou-se um filme sobre esta filósofa, tendo este blogue publicado uma notícia a propósito. Neste momento, decorridos cerca de 11 anos, o filme "Hannah Arendt", de Margarethe von Trotta, está acessível no youtube. Deixamos o link para o filme e republicamos parte do texto da altura, excertos de um artigo que pode ser lido na íntegra em http://sol.sapo.pt/inicio/Cultura/Interior.aspx?content_id=87275

Link para o filme "Hannah Arendt" :

https://www.youtube.com/watch?v=3FFhh0Ce59g

" (...) Ao contrário do que seria de esperar dos ditames da indústria cinematográfica, Margarethe von Trotta não se perde a fazer um filme biográfico e encerrar em duas horas estandardizadas uma vida tão complexa. O filme centra-se nos anos entre a ida de Arendt a Israel para a cobertura do tal julgamento e a polémica que se seguiu à publicação do seu artigo na New Yorker. É que a ‘filósofa europeia’ não só cumpriu os prazos de entrega, desfazendo o medo dos responsáveis da redacção da revista, como partiu a loiça. Ao contrário do que seria de esperar, Hannah Arendt não descreve um monstro, nem sequer alguém mentalmente perturbado no julgamento. Ela tem pela frente um homem de uma banalidade desconcertante.

Se os actos praticados por Eichmann não encaixam na figura, então como foi possível este homem, que alega em sua defesa limitar-se a cumprir ordens, ser capaz de chefiar a temida Unidade IV D 4/4 e IV B 4 do exército nazi e ser pessoalmente responsável pela organização geral da deportação dos judeus da Alemanha e dos países europeus deportados? Longe de o desculpar, Hannah Arendt quer compreender. E é daí que lhe surge o conceito da banalidade do mal, um dos mais conhecidos do seu pensamento. Nesta altura, Arendt já tinha escrito duas obras de referência para a compreensão da génese dos regimes autoritários que floresceram na Europa no tempo da Segunda Guerra: As Origens do Totalitarismo (1951), em que denuncia a origem do nazismo e do estalinismo, e A Condição Humana (1958), na qual descreve a sua teoria política.

Qualquer um pode ser Eichmann?

A partir daí, entramos no clímax do filme. A dimensão humana de Arendt, que von Trotta retrata, dizem os entendidos, fielmente, é posta à prova logo após a publicação do artigo. A comunidade judia reprova-lhe a classificação de um criminoso de guerra nazi como um homem banal, mas não lhe perdoa de todo a denúncia que faz, no mesmo artigo, da inépcia dos líderes judeus da época, que viram a catástrofe a acontecer quase impavidamente.

A coragem custou-lhe até amizades de uma vida. Mais uma vez, interessava-lhe não perdoar, mas compreender sem crucificar previamente: “A banalidade do mal foi, no fundo, uma resposta à questão: ‘como foi possível acontecer?”, diz Sofia Roque, que está a trabalhar numa tese de doutoramento sobre Arendt, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Se hoje aceitamos com alguma facilidade que qualquer pessoa, em qualquer época, pode ser um Eichmann ou um Hitler em potência, nos anos 60 isso não era assim. Quando Arendt formula a ideia, os acontecimentos ainda eram analisados muito a quente. No fundo, a ideia é coerente com o mais profundo dos pensamentos da filósofa: “A compreensão é o modo da política, sem ela não nos podemos situar no mundo”, acrescenta Sofia Roque, citando a autora. Arendt nem sequer parece à vontade, no filme, com o facto de se estar a fazer do nazi uma figura exemplar. Para ela, se uma pessoa abdicar, devido a determinadas circunstâncias históricas, de fazer o que a torna verdadeiramente humana – pensar – pode transformar-se num monstro.
Sofia, que viu o filme na única apresentação que teve em Portugal, a 25 de Maio no São Jorge (Lisboa), no âmbito da Judaica – 1.ª Mostra de Cinema e Cultura, recorda ainda o humanismo da personagem construída por von Trotta, que nem se esqueceu de pequenas conversas da filósofa com os muitos amigos que cultivou ou até o modo como Arendt se deitava no sofá, a fumar – era uma fumadora inveterada –, de olhos fechados, a organizar pensamentos.
[...]

E qual será o lugar do pensamento de Hannah Arendt na actualidade? São poucos hoje os que reclamam o modo como a filósofa pensa a tolerância, a humanidade, e sobretudo a acção política. “Ela não define os objectivos da acção política, nunca se assumiu em nenhum ‘ismo’ ou disse se era de esquerda ou de direita”, esclarece Sofia Roque. Antes defende “a ideia de um sistema de pequenos conselhos, de órgãos cuja dimensão permitisse a participação directa” dos cidadãos nas decisões, um pouco como o espaço público da polis na democracia ateniense da Antiguidade. Para Arendt, a política é antes de tudo um espaço de liberdade entre plurais que podem discutir, a partir do momento em que são cidadãos livres, “o sistema social, de justiça e de igualdade”.