Em qualquer debate argumentativo é importante estar atento para distinguir os argumentos válidos dos argumentos falaciosos, aqueles que aparentam ter valor mas não o têm. As falácias podem ser usadas intencionalmente com o simples objetivo de vencer a tese do adversário ou podem ser falhas do raciocínio de que o sujeito não se dá conta. Quer num caso, quer noutro, as falácias dificultam o prosseguimento do debate racional, introduzindo um fator que confunde, tira condições de esclarecimento do problema e de obtenção de um consenso.
A propósito do debate na sociedade portuguesa com expressão no espaço público, publicamos um artigo do médico neurologista Rosalvo Almeida, membro do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida), «O Espantalho e outras falácias», que aponta um conjunto de falácias (todas conhecidas dos nossos alunos) detetadas na discussão sobre a eutanásia. Este artigo foi publicado a 5 de setembro de 2016.
O espantalho e outras falácias
No debate sobre a despenalização da ajuda à antecipação da morte quando pedida por pessoa maior de idade em sofrimento devido a doença incurável ou irreversível (defendida sem ambiguidades em artigos meus neste jornal, “O horror do absoluto” em Julho e “Em defesa dos cuidados paliativos” em Abril, assim como em textos de outros) temos visto que há quem persista em considerar que é justo condenar à prisão quem, em determinadas condições, satisfaça tais pedidos.
O espantalho e outras falácias
Dizer que modificar uma lei para despenalizar um acto, em determinadas condições, é pôr o Estado a realizar esse acto consubstancia a conhecida falácia do ‘espantalho’ – é deturpar o argumento do adversário para ser mais fácil atacá-lo. Exagerar ou distorcer o que outrem afirma faz parecer que a própria posição é razoável, mas isso no final descredibiliza o debate racional e sério.
Perguntar se o Estado “deve promover a morte dos cidadãos que queiram pôr termo à sua vida” ou “pode decidir que vidas têm ou não dignidade” é utilizar outra falácia – a ‘pergunta capciosa’. A pergunta ardilosa tem uma presunção incluída de modo a que não possa ser respondida sem sensação de culpa. Mas a resposta é claramente: não!
Se, em vez de defendermos a nossa posição, desqualificássemos o opositor à nossa proposta, estaríamos, como foi feito, a recorrer à falácia ‘ad hominem’ e perderíamos a razão.
O Estado que legisla sobre as condições em que tais actos não serão crime não está a promover o homicídio. Dizer isso é ameaçar com a falácia da ‘rampa escorregadia’.
Dizer que os cuidados paliativos conseguem evitar sempre e sempre o sofrimento da pessoa doente é ‘tomar a parte pelo todo’ – outra falácia.
Não creio que se justifique continuar a malhar em ferro frio. Os dados estão lançados. Pressente-se que, na sociedade dos nossos dias, cresce o número dos que concordam com a despenalização da morte ajudada ou suicídio assistido, em determinadas condições.
É hora de os legisladores sentirem essa mudança de perspectiva nos portugueses. Cabe, agora, aos deputados tomarem iniciativas legislativas concretas que definam as condições em que não há lugar a pena de prisão para os profissionais de saúde que, em consciência, procedam com compaixão e evitem somar sofrimento ao sofrimento. O dever de bem assistir à pessoa doente não implica o afastamento do direito à objecção de consciência.
Disponível em O espantalho e outras falácias | Opinião | PÚBLICO (publico.pt). Consulta em 22 de junho 2023.
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