Faz hoje 71 anos. A idade de muitas pessoas que conhecemos. Foi há muito pouco tempo. Foi há tanto tempo.
Isto é o inferno. Hoje, nos nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível , e nada acontece, e continua a não acontecer nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam-se no chão. O tempo passa, gota a gota. Primo Levi, “Se Isto é um Homem” (1947)
Primo Levi, aos 24 anos, foi transportado para Auschwitz. Ele e outros seiscentos e cinquenta judeus italianos. Estávamos em fevereiro de 1944. Deles, só vinte sobreviveram — Levi incluído. Quando se viu, enfim, libertado pelo exército soviético, a 27 de janeiro de 1945, ao fim de 11 meses de privação e indignidade humana, Levi havia envelhecido, não 11 meses, mas décadas. Não só fisicamente. Mas serviu-lhe a experiência, de morte, não a sua mas a que testemunhou dia-a-dia à sua frente, todos os dias, a experiência de sobreviver quase miraculosamente — a resiliência fez o resto –, essa experiência-limite permitiu-lhe escrever, por exemplo, “Se Isto é Um Homem” (a trilogía de Auschwitz completa-se com “A Trégua” e “Os que Sucumbem e os que se Salvam”).
(texto retirado de http://observador.pt/2016/01/27/horror-auschwitz-do-holocausto-escreveu-na-primeira-pessoa-primo-levi/)
Como foi possível Auschwitz? Esta pergunta ainda não tem resposta. Ainda nos fere e incomoda. E não podemos descansar enquanto não percebermos o que o tornou possível. E não podemos descansar enquanto não percebermos de que são feitos os homens que matam outros homens, enquanto não percebermos como o mal se pode tornar a normalidade. Enquanto não percebermos, o horror pode voltar.
Quem pode dizer, perante os sinais do mundo de hoje, que podemos estar descansados?