12º I. Disciplina: Psicologia. O desafio, mútuo, foi lançado. Mais um debate, pediu a turma. Na última semana de aulas? Na última semana de aulas. É preciso um tema. Proposta:"Quem somos nós?". Proposta aceite. Afinal, esta é a grande questão com a qual qualquer um, pelo menos em alguma altura da vida, se confronta. Responder-lhe é outro problema. Aí, o conhecimento pode ter algum papel e, nomeadamente, aquele que se organiza com o nome de Psicologia. Assim, este debate seria uma boa maneira para cada um organizar uma síntese pessoal de um conjunto de conteúdos trabalhados ao longo do ano.
Debate aberto, pois. As orientações foram apenas, para além da exigência de respeitar as regras da discussão racional, integrar conteúdos lecionados ao longo do ano. Sob este aspeto, o papel do moderador seria muito importante.
No dia aprazado, esta foi a imagem que a moderadora escolheu para as questões que colocou para lançar o debate.
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Imagem retirada de http://webpages.fc.ul.pt/~ommartins/seminario/escher/circular4.html |
E assim foi. Uns alunos fizeram intervenções. Outros não. Mas todos revelaram interesse e capacidade de escuta. E as ideias viajaram para onde os alunos as quiseram levar... (mesmo não tendo dado muita importância à gravura de Escher). Como professora, gostei muito de finalizar o ano deste modo, dando-me conta que o tempo que passámos juntos não lhes foi indiferente e que algumas sementes caíram em terreno fértil...
Mas a S.R. não podia estar presente. E tinha pena. Mas por que não escrever? Seria outra maneira de participar. Aqui deixo o texto que enviou, que publicamos integralmente.
«Quem Somos Nós?»
O ser humano –
a sua origem, a sua essência, o que nos torna aquilo que somos, a nossa
individualidade e a nossa humanidade, todos estes aspetos permanecem sem
resposta até aos dias de hoje e protagonizam muitas das mais importantes teorias
de ciências como a Psicologia.
Uma das
questões a que este tema remete será, como mencionado anteriormente, a da
individualidade – será esta produto da hereditariedade ou do meio? John Watson
responde a esta pergunta com a teoria behaviorista em que afirma não só que a
Psicologia, para se constituir como ciência, deveria estudar exclusivamente o
observável (comportamentos), mas também que as causas de um determinado
comportamento não estão nas potencialidades genéticas do indivíduo mas sim fora
do mesmo. Ficou conhecido pela sua afirmação “Deem-me uma dúzia de crianças
saudáveis, bem constituídas, e a espécie de mundo que me é necessário para as
educar, e eu comprometo-me, tomando-as ao acaso, a formá-las de tal maneira que
se tornem um especialista da minha escola, médico, comerciante, jurista e mesmo
mendigo ou ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações,
tendências, aptidões, assim como da profissão e da raça dos seus antepassados”
em que se reflete a sua tese: a influência da hereditariedade no comportamento
e, portanto, na personalidade do indivíduo, é tão insignificante que alterando
o meio é possível alterar o comportamento das pessoas, independentemente da
genética.
No entanto,
Jean Piaget vem contradizer que o ser humano seja meramente um produto social.
Para ele, o comportamento é uma resposta que varia em função da interação entre
a personalidade do sujeito (potencialidades genéticas) e a situação (meio).
Deve ser tida em conta a crítica de Piaget ao simplismo de Watson: há que considerar
fatores não meramente externos como os sentimentos do sujeito, o seu
temperamento, o modo como assimilou as experiências vividas na infância, etc.
Claramente, a pergunta continua sem resposta certa, e talvez nunca viremos a
ter uma resposta absolutamente verdadeira. Essa seria outra questão – haverá
tal coisa como verdade absoluta? Porém, a questão que desejo abordar não é essa
mas sim uma que vai de encontro à humanidade do ser humano e à sua capacidade
de aprendizagem.
Piaget afirmou
que ao longo do processo de desenvolvimento, cada ser humano constrói o seu
conhecimento e que, nesse processo, o erro é uma componente muito importante. O
exemplo mais imediato para ilustrar esta afirmação são as crianças: durante a
infância as crianças estão constantemente a pôr à prova as suas teorias acerca
do mundo, como quando tocam no fogão e se queimam – a dor fá-las perceber que
erraram, interiorizam essa experiência e não a repetem. Qualquer pessoa já
aprendeu através de um erro que cometeu. Não questiono isso. Mas aprenderá o
ser humano, efetivamente, com os erros dos seus antepassados?
Para refletir
acerca desta pergunta devemos ter em conta as teorias de Hannah Arendt e Philip
Zimbardo: a banalidade do mal e o efeito Lúcifer, respetivamente. Hannah
Arendt, uma alemã judia, foi contratada por uma revista para cobrir o
julgamento do nazi Eichmann, um homem que teve um papel fundamental na
organização da solução final que, por sua vez, resultou num massacre brutal da
comunidade judia. No entanto, ao ver de perto este homem, Hannah Arendt constatou
que não via nele um monstro mas sim um homem comum com ambições de ascensão na
carreira. De facto, Eichmann passara todo o julgamento a repetir as mesmas
frases: que nunca matara um judeu (diretamente), que estava apenas a cumprir
ordens para ser um bom funcionário. Isto leva a filósofa alemã a notar outra
característica nele, além da sua banalidade: Eichmann não pensava. Repetia
frases programadas, sempre sem pensar. É desta forma que Arendt chega à
“banalidade do mal”, que protagoniza o seu livro Eichmann em Jerusalém. O mal é cometido por homens e não por
monstros, espalha-se pelas instituições, pelos livros e pela política, é banal.
No entanto, não tem profundidade – não é necessário pensar para agir pelo mal
–, ao contrário do bem. Homens como Eichmann não pensam, renunciam a ser
homens, e é nesse “vazio de pensamento” que o mal se instala, como refere
Hannah Arendt: "a triste verdade é que os maiores males são praticados por
pessoas que nunca se decidiram pelo bem ou pelo mal". Porém, é importante
que percebamos que Arendt não tentava, com isto, desculpar Eichmann de forma
alguma, mas sim entender por que agiu como agiu e foi assim que chegou também à
seguinte conclusão: “Em situação de tirania é muito mais fácil agir do que
pensar", com a qual concordo plenamente, visto que “Se chego a acreditar
que algo mau é um direito meu (ou um dever) é muito mais fácil cometê-lo."*
A situação
referida estava claramente relacionada com o holocausto e o nazismo, um dos
períodos mais negros da história que marcou todo o mundo e, nomeadamente, os
judeus. No entanto, hoje em dia, enfrentamos o confronto Israel-Palestina em
que, numa análise mais profunda, os Israelitas (maioritariamente judeus) estão
a fazer com os palestinianos aquilo que lhes foi feito há nem um século atrás,
pelos nazis às ordens de Adolf Hitler. Para mim é incompreensível tal
comportamento, tal abstração por parte dos israelitas do ato de pensar. Atacam
os palestinianos com mísseis, bombas e armamento topo de gama, enquanto estes
contra-atacam com pedras, não faltam as analogias entre esta guerra e o nazismo
mas, ainda assim, quando questionada sobre estar a favor ou contra a guerra,
grande parte da população israelita posiciona-se a favor sem hesitar.
Isto leva-nos a
pensar… Teremos dentro de nós igualmente o mal e o bem ao ponto de dependermos
das circunstâncias para que um deles se torne dominante? Philip Zimbardo
argumenta que sim, e é precisamente nesse ponto que assenta a sua teoria do
efeito Lúcifer. Segundo o psicólogo, “Se dermos às pessoas poder sem
supervisão, temos uma receita para o abuso” e foi precisamente isso que provou
com A Experiência da Prisão de Stanford – dividiu-se um grupo de estudantes
voluntários (com características psicológicas semelhantes), nos papéis de
guardas prisionais e reclusos para perceber os efeitos psicológicos da vida
prisional em pessoas ditas normais. O que aconteceu foi que os jovens ficaram
de tal forma absortos na experiência que deixaram de conseguir distinguir a
realidade da simulação. Foi exatamente este “poder sem supervisão” dado aos
“guardas” que os levou a embrenharem-se nos personagens ao ponto de abusar do
poder que lhes tinha sido dado e acabar por humilhar e violentar os “reclusos”,
ignorando as normas inicialmente estabelecidas. Da mesma forma, os
“prisioneiros” tornaram-se, na sua maioria, submissos às ordens e abusos que
sofriam e a experiência ficou então de tal forma fora de controlo que acabou
por ser cancelada ao sexto dia, mais de uma semana antes do previsto.
Perante estes
resultados aterradores, concluo o mesmo que concluiu Zimbardo – temos em nós “um
conformista e um totalitário, e não é preciso muito mais do que o uniforme
certo para que ele venha à tona”. Esta teoria aplica-se no conflito
Israel-Palestina, aplicava-se no nazismo, em Abou Ghraib e à espera de análise
estão tantas outras situações. Não há “más maçãs” ou “boas maçãs” mas um “mau
barril” ou um “bom barril”.
Ao abordar as teorias
de Watson e Piaget relativamente à questão hereditariedade-meio, senti-me
inclinada a concordar com Piaget – o comportamento é determinado pela interação
entre a personalidade do indivíduo e a situação –, e por muito tempo rejeitei
completamente que o ser humano pudesse ser um mero produto social. No entanto,
ao analisar as teorias de Hannah Arendt sobre como o mal é banal ao ponto de se
espalhar pela humanidade e o seu “vazio de pensamento” sem que demos conta, e
de Philip Zimbardo sobre como são as circunstâncias que revelam o melhor ou
pior de cada um, chego a um beco sem saída. Não digo que passo a concordar com
Watson, mas estou definitivamente mais consciente da minha ignorância e, por
isso, aberta às muitas teorias e nenhumas verdades absolutas com que me hei-de
cruzar.
Assim, coloco
novamente a questão principal: aprenderá o ser humano, efetivamente, com os
erros dos seus antepassados? Ou basta a isenção de responsabilidade, o
anonimato, um uniforme, a abstração do pensamento, para que tudo se repita
novamente?