A voracidade do tempo nos media substitui rapidamente umas notícias por outras. Mas o tempo do pensamento é outro. Pode ser lento e pode agir a longo prazo. Refletir é exatamente re- fletir, voltar de novo a pensar e, assim, recuperar e criar novos sentidos.
A partir de um acontecimento a que aqui fizemos referência (vd. posts de 20 novembro, 2014), o aluno Renato Silva elaborou este texto reflexivo que intitulou A Globalização da Indiferença :
A partir de um acontecimento a que aqui fizemos referência (vd. posts de 20 novembro, 2014), o aluno Renato Silva elaborou este texto reflexivo que intitulou A Globalização da Indiferença :
«Passaram seis meses, desde o momento em
que a “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida, dezanove dias depois de
ter nascido prematuramente, com 25 semanas de gestação e 410 gramas de peso.
Provavelmente muitos já não se
lembrarão, mas infelizmente este trágico desfecho relembra-nos que apesar dos
extraordinários avanços alcançados na medicina, o ser humano mantém uma
dimensão biológica que não lhe permite ultrapassar alguns constrangimentos,
próprios do mundo natural do qual faz parte.
Mas este acontecimento tornou-se também
notícia por outros factos, que nos devem levar a refletir sobre a natureza
humana e a vida em sociedade. O ser humano é, por definição, uma espécie animal
da ordem dos primatas, e nessa qualidade temos muitos pontos em comum com todas
as outras espécies animais que habitam o nosso planeta. Mas o Homem é um animal racional, e este
“pequeno” pormenor distingue-nos de todos os outros animais. Racional é o ser
que pensa, raciocina, que age segundo a razão.
Esta capacidade para pensar
libertou-nos de uma dimensão meramente instintiva, e permite-nos agir e não
apenas reagir. Foi esta esta capacidade para moldar a natureza, a natureza em
geral, mas também a sua própria “natureza”, que permitiu ao Homem impôr-se aos
demais.
Identificamo-nos com comportamentos de
outras espécies animais, que por vezes parecem ir para além do mero instinto,
quer se trate da “solidariedade” e “altruísmo” das formigas e das abelhas, quer
se trate do “amor maternal” e “coesão familiar” nas baleias, nos primatas, nos
elefantes.
Muitos defendem que o “instinto
maternal” e o “espírito de grupo” entre alguns animais parece, afinal, bem mais
puro que o “amor pelo próximo” e a “solidariedade de grupo” demonstrado pelos
humanos, neste mundo contemporâneo, onde
se incentiva o “individualismo” primário, como que num regresso a um passado de
“cada um por si”.
A capacidade para “pensar mais além”
distingue-nos das outras espécies
animais e, desde cedo, o ser humano percebeu que teria mais hipóteses de
sobreviver em grupo, do que isoladamente, num ambiente hostil. Os primeiros
pequenos grupos nómadas evoluíram e cresceram ao longo do tempo, até às
modernas e complexas formas de Estado e Comunidade Internacional. Como indicaram Hobbes, Locke e Rousseau,
através de um contrato social, o indivíduo prescindiu de parte das suas
liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos mais
vastos.
Mais recentemente, após a segunda
Grande Guerra vingou a ideia de Estado social, ou se preferirmos Estado
providência ou Estado de bem estar. Depois de um período de guerras
destrutivas, confrontos sociais e crises económicas graves, tornava-se
necessária uma solidariedade institucionalizada pelo Estado, e porque não uma
solidariedade institucionalizada entre Estados, que levasse a cabo a tarefa de
redistribuição dos benefícios gerados pela comunidade nacional, ou
internacional.
O mundo atual é o mundo da
globalização. Falamos de globalização económica, globalização social,
globalização cultural, globalização política. O desenvolvimento dos meios de
comunicação e das tecnologias de informação tornou o nosso mundo mais pequeno.
Esta globalização caracteriza-se pela diminuição das distâncias e do tempo,
fenómeno a que David Harvey chamou compressão espaço-tempo. Tornou-se possível
a difusão de notícias e conhecimentos de forma instantânea, possibilitando a
transposição de barreiras físicas e políticas em todo o mundo. Não é
negligenciável o papel que o desenvolvimento das tecnologias de informação tem
tido na aproximação entre povos e na denúncia das injustiças e atrocidades
cometidas um pouco por todo o mundo.
Mas talvez o maior desafio que nos
espera seja o da globalização da indiferença, como insistentemente tem referido
o Papa Francisco: “Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos
certamente dos outros, não nos interessam os seus problemas, nem as
atribulações e injustiças que sofrem e, assim, o nosso coração cai na
indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que
não estão bem”...“Esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão
mundial tal, que podemos falar de uma globalização da indiferença. Trata-se de
um mal estar que temos obrigação, como cristãos, de enfrentar”.
Esta indiferença começa por ter uma
dimensão individual, porque tal como num reality show da vida real vão
desfilando diariamente, de forma vertiginosa, uma sucessão de episódios da mais
inusitada violência, quer sejam agressões entre colegas de escola, violência
doméstica, atos de terrorismo, o drama dos que morrem nas rotas de imigração
ilegal em busca de uma vida melhor, ou as imagens daqueles que sofrem a
exclusão social, ou que nem sequer têm como se alimentar, e vamos vivendo tudo
isto com uma certa normalidade, colocando-nos à margem destes acontecimentos,
como se nada pudessemos fazer para os tentar alterar.
Mas esta indiferença tem também uma
dimensão de Estado. O Estado, aquele pelo qual as pessoas abdicaram de parte
das suas liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos
mais vastos, é hoje comandado pelos mercados, um Estado vergado sob as contas
públicas desequilibradas e défices públicos excessivos, a braços com as
exigências dos credores internacionais para pagar agora o que deve, tem tendência
para olhar para as pessoas não como pessoas, mas como uma décima de ponto
percentual que é preciso corrigir no défice público. Mas a indiferença entre
Estados é também real e, apenas para citar um exemplo, aquela ideia de
comunidade de Estados de bem estar, tão bem traduzida nas palavras de Jean
Monnet “Mais do que coligar Estados, importa unir os homens”, a que se começou
por chamar Comunidade Económica Europeia, e mais tarde adoptou o nome de União
Europeia, cada vez mais parece correr o risco de ficar para a história como uma miragem utópica.
Onde se
enquadra em tudo isto a luta da “guerreira” Margarida? Emigrados em busca de um
futuro melhor, o casal Eugénia e Gonçalo vivem o nascimento de Margarida, um
bebé prematuro extremo (antes de 28 semanas e abaixo de 1000 gramas de peso).
No Hospital privado onde a bebé nasceu, são confrontados com uma despesa de 1
000 euros por dia e, sem possibilidade de suportar tal despesa, são confrontados
também com a aparente indiferença do Estado de destino (Dubai) e do Estado de
origem (Portugal). Felizmente que as tecnologias de informação, e as tão
propaladas redes sociais, que muitas vezes servem para veicular propósitos não
muito nobres, foram afinal o motor de uma extraordinária onda de solidariedade
humana, que abanou a indiferença dos Estados, e permitiu a Eugénia e Gonçalo
manter a esperança durante dezanove dias.
A “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida,
mas a sua luta, e a onda de solidariedade que se gerou em torno dela, despertou
consciências e permite-nos a esperança de que a globalização da indiferença
poderá ser vencida. »
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