segunda-feira, 29 de junho de 2015

A Globalização da Indiferença

A voracidade do tempo nos media substitui rapidamente umas notícias por outras. Mas o tempo do pensamento é outro. Pode ser lento e pode agir a longo prazo. Refletir é exatamente re- fletir, voltar de novo a pensar e, assim, recuperar e criar novos sentidos.
A partir de um acontecimento a que aqui fizemos referência (vd. posts de 20 novembro, 2014), o aluno Renato Silva elaborou este texto reflexivo que intitulou A Globalização da Indiferença :

«Passaram seis meses, desde o momento em que a “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida, dezanove dias depois de ter nascido prematuramente, com 25 semanas de gestação e 410 gramas de peso.
Provavelmente muitos já não se lembrarão, mas infelizmente este trágico desfecho relembra-nos que apesar dos extraordinários avanços alcançados na medicina, o ser humano mantém uma dimensão biológica que não lhe permite ultrapassar alguns constrangimentos, próprios do mundo natural do qual faz parte.
Mas este acontecimento tornou-se também notícia por outros factos, que nos devem levar a refletir sobre a natureza humana e a vida em sociedade. O ser humano é, por definição, uma espécie animal da ordem dos primatas, e nessa qualidade temos muitos pontos em comum com todas as outras espécies animais que habitam o nosso planeta.  Mas o Homem é um animal racional, e este “pequeno” pormenor distingue-nos de todos os outros animais. Racional é o ser que pensa, raciocina, que age segundo a razão.
Esta capacidade para pensar libertou-nos de uma dimensão meramente instintiva, e permite-nos agir e não apenas reagir. Foi esta esta capacidade para moldar a natureza, a natureza em geral, mas também a sua própria “natureza”, que permitiu ao Homem impôr-se aos demais.
Identificamo-nos com comportamentos de outras espécies animais, que por vezes parecem ir para além do mero instinto, quer se trate da “solidariedade” e “altruísmo” das formigas e das abelhas, quer se trate do “amor maternal” e “coesão familiar” nas baleias, nos primatas, nos elefantes.
Muitos defendem que o “instinto maternal” e o “espírito de grupo” entre alguns animais parece, afinal, bem mais puro que o “amor pelo próximo” e a “solidariedade de grupo” demonstrado pelos humanos, neste mundo contemporâneo,  onde se incentiva o “individualismo” primário, como que num regresso a um passado de “cada um por si”.
A capacidade para “pensar mais além” distingue-nos  das outras espécies animais e, desde cedo, o ser humano percebeu que teria mais hipóteses de sobreviver em grupo, do que isoladamente, num ambiente hostil. Os primeiros pequenos grupos nómadas evoluíram e cresceram ao longo do tempo, até às modernas e complexas formas de Estado e Comunidade Internacional.  Como indicaram Hobbes, Locke e Rousseau, através de um contrato social, o indivíduo prescindiu de parte das suas liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos mais vastos.
Mais recentemente, após a segunda Grande Guerra vingou a ideia de Estado social, ou se preferirmos Estado providência ou Estado de bem estar. Depois de um período de guerras destrutivas, confrontos sociais e crises económicas graves, tornava-se necessária uma solidariedade institucionalizada pelo Estado, e porque não uma solidariedade institucionalizada entre Estados, que levasse a cabo a tarefa de redistribuição dos benefícios gerados pela comunidade nacional, ou internacional.
O mundo atual é o mundo da globalização. Falamos de globalização económica, globalização social, globalização cultural, globalização política. O desenvolvimento dos meios de comunicação e das tecnologias de informação tornou o nosso mundo mais pequeno. Esta globalização caracteriza-se pela diminuição das distâncias e do tempo, fenómeno a que David Harvey chamou compressão espaço-tempo. Tornou-se possível a difusão de notícias e conhecimentos de forma instantânea, possibilitando a transposição de barreiras físicas e políticas em todo o mundo. Não é negligenciável o papel que o desenvolvimento das tecnologias de informação tem tido na aproximação entre povos e na denúncia das injustiças e atrocidades cometidas um pouco por todo o mundo.
Mas talvez o maior desafio que nos espera seja o da globalização da indiferença, como insistentemente tem referido o Papa Francisco: “Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros, não nos interessam os seus problemas, nem as atribulações e injustiças que sofrem e, assim, o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem”...“Esta atitude egoísta de indiferença atingiu uma dimensão mundial tal, que podemos falar de uma globalização da indiferença. Trata-se de um mal estar que temos obrigação, como cristãos, de enfrentar”.
Esta indiferença começa por ter uma dimensão individual, porque tal como num reality show da vida real vão desfilando diariamente, de forma vertiginosa, uma sucessão de episódios da mais inusitada violência, quer sejam agressões entre colegas de escola, violência doméstica, atos de terrorismo, o drama dos que morrem nas rotas de imigração ilegal em busca de uma vida melhor, ou as imagens daqueles que sofrem a exclusão social, ou que nem sequer têm como se alimentar, e vamos vivendo tudo isto com uma certa normalidade, colocando-nos à margem destes acontecimentos, como se nada pudessemos fazer para os tentar alterar.
Mas esta indiferença tem também uma dimensão de Estado. O Estado, aquele pelo qual as pessoas abdicaram de parte das suas liberdades individuais, para numa vida em sociedade alcançar objetivos mais vastos, é hoje comandado pelos mercados, um Estado vergado sob as contas públicas desequilibradas e défices públicos excessivos, a braços com as exigências dos credores internacionais para pagar agora o que deve, tem tendência para olhar para as pessoas não como pessoas, mas como uma décima de ponto percentual que é preciso corrigir no défice público. Mas a indiferença entre Estados é também real e, apenas para citar um exemplo, aquela ideia de comunidade de Estados de bem estar, tão bem traduzida nas palavras de Jean Monnet “Mais do que coligar Estados, importa unir os homens”, a que se começou por chamar Comunidade Económica Europeia, e mais tarde adoptou o nome de União Europeia, cada vez mais parece correr o risco de ficar para a história como  uma miragem utópica.  
     Onde se enquadra em tudo isto a luta da “guerreira” Margarida? Emigrados em busca de um futuro melhor, o casal Eugénia e Gonçalo vivem o nascimento de Margarida, um bebé prematuro extremo (antes de 28 semanas e abaixo de 1000 gramas de peso). No Hospital privado onde a bebé nasceu, são confrontados com uma despesa de 1 000 euros por dia e, sem possibilidade de suportar tal despesa, são confrontados também com a aparente indiferença do Estado de destino (Dubai) e do Estado de origem (Portugal). Felizmente que as tecnologias de informação, e as tão propaladas redes sociais, que muitas vezes servem para veicular propósitos não muito nobres, foram afinal o motor de uma extraordinária onda de solidariedade humana, que abanou a indiferença dos Estados, e permitiu a Eugénia e Gonçalo manter a esperança durante dezanove dias.
A “guerreira” Margarida perdeu a batalha da vida, mas a sua luta, e a onda de solidariedade que se gerou em torno dela, despertou consciências e permite-nos a esperança de que a globalização da indiferença poderá ser vencida. »     
   


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