Este texto foi apresentado em aula pelo João Borges (11ºA), como resposta à solicitação de um pequeno trabalho em que os alunos tinham que escolher uma descoberta científica e mostrar benefícios ou malefícios associados a essa descoberta .Pretendia-se que os alunos pudessem distinguir o campo teórico da investigação científica do campo prático da aplicação dos conhecimentos científicos.
O João desviou-se do tema, mas construiu um texto interessante, atravessado de ironia e de humor negro, que foi apreciado pelos colegas e que aqui publicamos.
Ao longo da
História, e agindo, na maioria das vezes, de acordo com os desejos dos seus
soberanos (sempre tão famintos pelas punições mais cruéis imagináveis para
aqueles que, contra o seu jugo, se rebelassem, assim como pela maximização de
mortes, em batalha, por parte da fação combatente rival), não foram poucos
aqueles que conceptualizaram e materializaram engenhos com, por único
propósito, constituir a causa de sofrimento atroz e morte do maior número possível
de pessoas; engenhos diabólicos como, por exemplo, o “esmaga-polegares”, a metralhadora e a bomba
atómica. Não são, porém, estes ou outros similares, criados e usados para infligir
dor e exterminar, aqueles que hoje pretendo dar aqui a conhecer, mas uma
invenção que foi, supostamente, responsável pela carbonização súbita e
inesperada de, em jantares de gala, serões e espetáculos, até 3000
mulheres: a
crinolina.
Mas, que é isso?
Que desumana engenhoca, certamente criada por repugnantes sádicos, nem sequer
merecedores de serem chamados de “humanos”, foi esta tal “crinolina”, que
reduziu milhares de mães, esposas e filhas, alegremente jovens e barulhentas, a
silenciosas carcaças chamuscadas? Pois bem, eu passo a explicar: a crinolina
tratou-se duma armação, primeiro em crina cavalar (que conferiu o nome à
invenção) e, posteriormente, em aço, que tinha por objetivo servir de suporte
às gigantescas saias envergadas pelas senhoras, tanto as da aristocracia quanto
as do proletariado, do Ocidente da segunda metade do século XIX, tendo por
inventora a francesa Angélique Caroline Milliet, que patenteou um protótipo
desta armação em 1856 que, posteriormente, venderia à firma
americana dos irmãos Thomson, que começariam a produzir estas crinolinas em
massa. Porém, a que se deveu o desenvolvimento dela, desta mortífera armação
metálica? Pois bem, a duas principais razões: a primeira sendo o desejo
ressurgido por vestuário feminino caro, mas bastante pouco convencional, que se
começou a verificar por volta das primeiras décadas do período oitocentista,
principalmente devido ao crescimento económico e nascimento duma nova classe
média abastada que, por volta dessa altura, ocorreu na Europa, e permitiu a uma
porção significativa de mulheres não mais ter que trabalhar e, assim, com um
maior rendimentos familiar, poder dar-se ao luxo, invulgar na época, de gastar
parte dele nas últimas modas ou indumentária que, até então, fora apenas
avistada em membros da nobreza. Por exemplo, saias gigantescas... Contudo,
estas saias apresentavam um problema, sendo ele a outra principal razão para a
elaboração da crinolina: é que, de modo a apresentarem-se tão volumosas quanto
possível, estas saias colossais necessitavam de, por baixo, dezenas de camadas
de pesados saiotes, que tanto dificultavam o andar como faziam colapsar com o
calor, no Verão, as que os usavam... Não muito desejável tudo isto e, por algum
tempo, parecia que esta mania de saias cujos diâmetros chegavam a superar os 4
metros iria
desaparecer devido à falta de praticidade destas, e assim, de facto, teria
acontecido... não fosse pela crinolina.
Uma gaiola
gigantesca de uso fácil e preço algo acessível, que conferia volume
suficiente às tais saias de dimensões ridículas sem sobreaquecer ou
sobrecarregar as que dela usufruíam, a crinolina revelou-se um sucesso comercial
da noite para o dia, começando a ser notada sob as saias de todas as damas, com
destaque para as inglesas e, contudo sem grandes efeitos nas suas vendas,
prontamente ridicularizada pelas revistas humorísticas a ela contemporâneas. No
entanto, embora aparentemente perfeita, a crinolina logo começou a apresentar
alguns pequenos problemas: por exemplo, embora constituída de aço, esta era
bastante leve; demasiado leve, até... e começaram a multiplicar-se os relatos
de brisas mínimas erguendo completamente a crinolina e, com ela, as saias,
durante passeios ou encontros, revelando as pernas da mulher em questão e quase
fazendo desmaiar de pudor as conservadoras gentes que tal avistavam. Isto,
contudo, só perante brisazinhas de nada, sendo que um vento moderado seria já
capaz de meter as donzelas a acompanhar os pássaros no seu voo. Pelo menos,
claro, até este vendavalzinho desaparecer e, desse modo, a pobre rapariga se
precipitar, novamente, sobre o solo; com sorte, rachando apenas alguns ossos e,
com azar, indo repousar eternamente bem mais cedo do que o esperado. Todavia,
não foram instâncias destas ou das crinolinas de trabalhadoras fabris ficando
presas nas máquinas e causando a mutilação ou morte das suas proprietárias a
principal causa de morte das mulheres, e o maior dos motivos para eu ter
caracterizado esta invenção como “mortífera”; não, pois a grande maioria destes
femicídios não teve, como colaborador da crinolina assassina, o vento ou
maquinaria industrial, mas o fogo. Isto porque, os materiais de que eram
compostos as saias - seda, musselina e cetim - eram altamente inflamáveis, e as
crinolinas permitiam que estes tecidos chegassem até a mais de 2
metros da mulher
e, sem que ela se desse conta disso, alcançassem as labaredas das lareiras
acesas durante jantares e... bem, digamos que pelo final da noite, não era
apenas o leitão à mesa que se achava assado.
Este acidente
repetir-se-ia, como mencionei no início, demasiadas vezes e, eventualmente, a
crinolina caiu em desuso, tanto devido ao avanço natural da moda quanto ao
crescente histórico de mortes e ferimentos a ela associados, e que era já
impossível de ignorar. É por isso, talvez, que eu considero a crinolina uma das
invenções das que não trouxeram grande benefício para a Humanidade das mais
trágicas de sempre pois, ao contrário de explosivos e armas, esta não foi algo
nascido da intenção de matar, causar sofrimento e desgraça; foi apenas uma
armaçãozinha, criada com a melhor das intenções por uma trabalhadora francesa
da classe média, com a qual pretendia-se satisfazer uma paixão de muitas
mulheres, pela primeira vez suficientemente livres e endinheiradas para poder
dedicar-se a outras coisas que não a vida doméstica ou o trabalho. E, no
entanto, apesar de nada tê-lo feito prever, este objeto viria a tornar milhares
de namorados em solteiros, esposos em viúvos e crianças em orfãs, causando a
mutilação, queda fatal, esmagamento e carbonização de incontáveis infelizes.
A crinolina é assim uma das melhores provas de que até as mais bem-intencionadas das invenções são capazes, sob as circunstâncias certas, de provocar tanto mal quanto as idealizadas precisamente para fins nefastos, sendo que enquanto não constitui de forma alguma um ponto a favor duma paragem no progresso tecnológico, constitui certamente um a favor duma melhor análise de quaisquer avanços, assim como duma aprendizagem a partir dos erros cometidos, com remediação dos mesmos.
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