quarta-feira, 23 de março de 2022

Saias em fogo - Um olhar sobre a crinolina

Este texto foi apresentado em aula pelo João Borges (11ºA), como resposta à solicitação de um pequeno trabalho em que os alunos tinham que escolher uma descoberta científica e mostrar benefícios ou malefícios associados a essa descoberta .Pretendia-se que os alunos pudessem distinguir o campo teórico da investigação científica do campo prático da aplicação dos conhecimentos científicos.
O João desviou-se do tema, mas construiu um texto interessante, atravessado de ironia e de humor negro, que foi apreciado pelos colegas e que aqui publicamos.





Ao longo da História, e agindo, na maioria das vezes, de acordo com os desejos dos seus soberanos (sempre tão famintos pelas punições mais cruéis imagináveis para aqueles que, contra o seu jugo, se rebelassem, assim como pela maximização de mortes, em batalha, por parte da fação combatente rival), não foram poucos aqueles que conceptualizaram e materializaram engenhos com, por único propósito, constituir a causa de sofrimento atroz e morte do maior número possível de pessoas; engenhos diabólicos como, por exemplo, o  “esmaga-polegares”, a metralhadora e a bomba atómica. Não são, porém, estes ou outros similares, criados e usados para infligir dor e exterminar, aqueles que hoje pretendo dar aqui a conhecer, mas uma invenção que foi, supostamente, responsável pela carbonização súbita e inesperada de, em jantares de gala, serões e espetáculos, até 3000 mulheres: a crinolina.

Mas, que é isso? Que desumana engenhoca, certamente criada por repugnantes sádicos, nem sequer merecedores de serem chamados de “humanos”, foi esta tal “crinolina”, que reduziu milhares de mães, esposas e filhas, alegremente jovens e barulhentas, a silenciosas carcaças chamuscadas? Pois bem, eu passo a explicar: a crinolina tratou-se duma armação, primeiro em crina cavalar (que conferiu o nome à invenção) e, posteriormente, em aço, que tinha por objetivo servir de suporte às gigantescas saias envergadas pelas senhoras, tanto as da aristocracia quanto as do proletariado, do Ocidente da segunda metade do século XIX, tendo por inventora a francesa Angélique Caroline Milliet, que patenteou um protótipo desta armação em 1856 que, posteriormente, venderia à firma americana dos irmãos Thomson, que começariam a produzir estas crinolinas em massa. Porém, a que se deveu o desenvolvimento dela, desta mortífera armação metálica? Pois bem, a duas principais razões: a primeira sendo o desejo ressurgido por vestuário feminino caro, mas bastante pouco convencional, que se começou a verificar por volta das primeiras décadas do período oitocentista, principalmente devido ao crescimento económico e nascimento duma nova classe média abastada que, por volta dessa altura, ocorreu na Europa, e permitiu a uma porção significativa de mulheres não mais ter que trabalhar e, assim, com um maior rendimentos familiar, poder dar-se ao luxo, invulgar na época, de gastar parte dele nas últimas modas ou indumentária que, até então, fora apenas avistada em membros da nobreza. Por exemplo, saias gigantescas... Contudo, estas saias apresentavam um problema, sendo ele a outra principal razão para a elaboração da crinolina: é que, de modo a apresentarem-se tão volumosas quanto possível, estas saias colossais necessitavam de, por baixo, dezenas de camadas de pesados saiotes, que tanto dificultavam o andar como faziam colapsar com o calor, no Verão, as que os usavam... Não muito desejável tudo isto e, por algum tempo, parecia que esta mania de saias cujos diâmetros chegavam a superar os 4 metros iria desaparecer devido à falta de praticidade destas, e assim, de facto, teria acontecido... não fosse pela crinolina.

Uma gaiola gigantesca de uso fácil e preço algo acessível, que conferia volume suficiente às tais saias de dimensões ridículas sem sobreaquecer ou sobrecarregar as que dela usufruíam, a crinolina revelou-se um sucesso comercial da noite para o dia, começando a ser notada sob as saias de todas as damas, com destaque para as inglesas e, contudo sem grandes efeitos nas suas vendas, prontamente ridicularizada pelas revistas humorísticas a ela contemporâneas. No entanto, embora aparentemente perfeita, a crinolina logo começou a apresentar alguns pequenos problemas: por exemplo, embora constituída de aço, esta era bastante leve; demasiado leve, até... e começaram a multiplicar-se os relatos de brisas mínimas erguendo completamente a crinolina e, com ela, as saias, durante passeios ou encontros, revelando as pernas da mulher em questão e quase fazendo desmaiar de pudor as conservadoras gentes que tal avistavam. Isto, contudo, só perante brisazinhas de nada, sendo que um vento moderado seria já capaz de meter as donzelas a acompanhar os pássaros no seu voo. Pelo menos, claro, até este vendavalzinho desaparecer e, desse modo, a pobre rapariga se precipitar, novamente, sobre o solo; com sorte, rachando apenas alguns ossos e, com azar, indo repousar eternamente bem mais cedo do que o esperado. Todavia, não foram instâncias destas ou das crinolinas de trabalhadoras fabris ficando presas nas máquinas e causando a mutilação ou morte das suas proprietárias a principal causa de morte das mulheres, e o maior dos motivos para eu ter caracterizado esta invenção como “mortífera”; não, pois a grande maioria destes femicídios não teve, como colaborador da crinolina assassina, o vento ou maquinaria industrial, mas o fogo. Isto porque, os materiais de que eram compostos as saias - seda, musselina e cetim - eram altamente inflamáveis, e as crinolinas permitiam que estes tecidos chegassem até a mais de 2 metros da mulher e, sem que ela se desse conta disso, alcançassem as labaredas das lareiras acesas durante jantares e... bem, digamos que pelo final da noite, não era apenas o leitão à mesa que se achava assado.

Este acidente repetir-se-ia, como mencionei no início, demasiadas vezes e, eventualmente, a crinolina caiu em desuso, tanto devido ao avanço natural da moda quanto ao crescente histórico de mortes e ferimentos a ela associados, e que era já impossível de ignorar. É por isso, talvez, que eu considero a crinolina uma das invenções das que não trouxeram grande benefício para a Humanidade das mais trágicas de sempre pois, ao contrário de explosivos e armas, esta não foi algo nascido da intenção de matar, causar sofrimento e desgraça; foi apenas uma armaçãozinha, criada com a melhor das intenções por uma trabalhadora francesa da classe média, com a qual pretendia-se satisfazer uma paixão de muitas mulheres, pela primeira vez suficientemente livres e endinheiradas para poder dedicar-se a outras coisas que não a vida doméstica ou o trabalho. E, no entanto, apesar de nada tê-lo feito prever, este objeto viria a tornar milhares de namorados em solteiros, esposos em viúvos e crianças em orfãs, causando a mutilação, queda fatal, esmagamento e carbonização de incontáveis infelizes.

A crinolina é assim uma das melhores provas de que até as mais bem-intencionadas das invenções são capazes, sob as circunstâncias certas, de provocar tanto mal quanto as idealizadas precisamente para fins nefastos, sendo que enquanto não constitui de forma alguma um ponto a favor duma paragem no progresso tecnológico, constitui certamente um a favor duma melhor análise de quaisquer avanços, assim como duma aprendizagem a partir dos erros cometidos, com remediação dos mesmos.

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