Sob este título Pandemia e Filosofia, iniciamos a publicação de um conjunto de textos, que demos a conhecer na nossa escola através da sua distribuição na sala de professores e de uma pequena exposição na BECRE. Este ano, as condições não permitiram um maior envolvimento dos alunos no espaço escolar. O primeiro texto é de Viriato Soromenho-Marques e os restantes de João Cardoso Rosas, selecionados pelo seu enquadramento no tema do Dia Mundial da Filosofia deste ano. Ambos correspondem a excertos de dois artigos que foram publicados na imprensa, no jornal Diário de Notícias. O artigo de João Cardoso Rosas, pela sua extensão, foi dividido por nós em capítulos, aos quais foram atribuídos títulos para melhor legibilidade.
DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA
Pandemia e hierarquia de valores
Viriato Soromenho-Marques, filósofo,
Professor na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa
Se
o SARS-CoV 2 fosse uma arma, seria quase perfeita. A arma mais eficaz não é a
mais letal, mas aquela que causa mais feridos de longa duração, que
sobrecarrega as estruturas logísticas e hospitalares, que semeia o medo e a
discórdia, que diminui a capacidade de luta através da entropia e
desmoralização da sociedade. É exatamente o que estamos a observar - de modo
ainda mais refinado do que na primavera - nestes primeiros passos da segunda
vaga da covid-19.
Estamos
num momento de encruzilhada em toda a Europa. Seria conveniente analisarmos
dois "pontos cegos" fundamentais no modo como encaramos o que está a
acontecer. A sua elucidação poderá ajudar-nos, como cidadãos, a fazer um juízo
crítico e a agir em conformidade. O primeiro aspeto negligenciado prende-se com
a falta de humildade de muitas das opiniões e críticas à ação dos governos. É
claro que os governos devem ser escrutinados e criticados, o que é inadmissível
é o caudal de críticas insensatas, vindas também de peritos, que arrogantemente
escamoteiam a colossal ignorância que ainda temos sobre este novo coronavírus.
Recordo a ligeireza como alguns especialistas se têm atrevido a prometer
vacinas para datas próximas, mantendo-se imperturbáveis perante o número
crescente de testes que são interrompidos por efeitos indesejáveis na saúde dos
voluntários. Ou ainda a sobranceria como responsáveis de saúde pública falam em
"imunidade de grupo", para justificar os erros grosseiros cometidos,
por exemplo, pelas autoridades de saúde suecas. (…)
O
desprezo pelo direito à vida tem unido uma frente bastante insólita e
disparatada que vai de Trump e Bolsonaro a intelectuais de
"esquerda", como Giorgio Agamben. Para Trump, a vida dos mais frágeis
não pode parar o curso normal dos negócios. Para Agamben, só um Leviatã
tirânico seria capaz, para salvar a "vida nua" dos cidadãos, de os
confinar compulsivamente... Os Estados europeus estão a devolver à
autodisciplina dos cidadãos a tarefa de evitar novo confinamento. Trata-se de
conciliar a liberdade individual com a responsabilidade que, em tempos
pandémicos, cada um tem pelo direito à vida de todos os outros. Se as
democracias europeias falharem na defesa da vida, todos conhecemos como abundam
autoritarismos que a prometem salvar, em troca do sacrifício de todos os outros
direitos que a tornam digna de ser vivida.
,
Artigo
publicado no Jornal Diário de Notícias, na edição de 17 de
outubro, 2020
Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/17-out-2020/pandemia-e-hierarquia-de-valores-12929448.html
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