quinta-feira, 19 de novembro de 2020

PANDEMIA E FILOSOFIA (1)

Sob este título Pandemia e Filosofia, iniciamos a publicação de um conjunto de textos, que demos a conhecer na nossa escola através da sua distribuição na sala de professores e de uma pequena exposição na BECRE. Este ano, as condições não permitiram um maior envolvimento dos alunos no espaço escolar. O primeiro texto é de Viriato Soromenho-Marques e os restantes de João Cardoso Rosas, selecionados pelo seu enquadramento no tema do Dia Mundial da Filosofia deste ano. Ambos correspondem a excertos de dois artigos que foram publicados na imprensa, no jornal Diário de Notícias. O artigo de João Cardoso Rosas, pela sua extensão, foi dividido por nós em capítulos, aos quais foram atribuídos títulos para melhor legibilidade. 


DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

Pandemia e hierarquia de valores

Viriato Soromenho-Marques, filósofo,

Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

 

Se o SARS-CoV 2 fosse uma arma, seria quase perfeita. A arma mais eficaz não é a mais letal, mas aquela que causa mais feridos de longa duração, que sobrecarrega as estruturas logísticas e hospitalares, que semeia o medo e a discórdia, que diminui a capacidade de luta através da entropia e desmoralização da sociedade. É exatamente o que estamos a observar - de modo ainda mais refinado do que na primavera - nestes primeiros passos da segunda vaga da covid-19.

Estamos num momento de encruzilhada em toda a Europa. Seria conveniente analisarmos dois "pontos cegos" fundamentais no modo como encaramos o que está a acontecer. A sua elucidação poderá ajudar-nos, como cidadãos, a fazer um juízo crítico e a agir em conformidade. O primeiro aspeto negligenciado prende-se com a falta de humildade de muitas das opiniões e críticas à ação dos governos. É claro que os governos devem ser escrutinados e criticados, o que é inadmissível é o caudal de críticas insensatas, vindas também de peritos, que arrogantemente escamoteiam a colossal ignorância que ainda temos sobre este novo coronavírus. Recordo a ligeireza como alguns especialistas se têm atrevido a prometer vacinas para datas próximas, mantendo-se imperturbáveis perante o número crescente de testes que são interrompidos por efeitos indesejáveis na saúde dos voluntários. Ou ainda a sobranceria como responsáveis de saúde pública falam em "imunidade de grupo", para justificar os erros grosseiros cometidos, por exemplo, pelas autoridades de saúde suecas. (…)

O desprezo pelo direito à vida tem unido uma frente bastante insólita e disparatada que vai de Trump e Bolsonaro a intelectuais de "esquerda", como Giorgio Agamben. Para Trump, a vida dos mais frágeis não pode parar o curso normal dos negócios. Para Agamben, só um Leviatã tirânico seria capaz, para salvar a "vida nua" dos cidadãos, de os confinar compulsivamente... Os Estados europeus estão a devolver à autodisciplina dos cidadãos a tarefa de evitar novo confinamento. Trata-se de conciliar a liberdade individual com a responsabilidade que, em tempos pandémicos, cada um tem pelo direito à vida de todos os outros. Se as democracias europeias falharem na defesa da vida, todos conhecemos como abundam autoritarismos que a prometem salvar, em troca do sacrifício de todos os outros direitos que a tornam digna de ser vivida.

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Artigo publicado no Jornal Diário de Notícias, na edição de 17 de outubro, 2020

Disponível em https://www.dn.pt/edicao-do-dia/17-out-2020/pandemia-e-hierarquia-de-valores-12929448.html

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