Dos 7 excertos do
texto “Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas”, da autoria de João
Cardoso Rosas, colocados à disposição no site “Espaço Crítico na Escola”, foi o
segundo, lá titulado de “Os problemas ético-políticos”, o que me mais despertou
a atenção; não, porém, todo, na íntegra, mas, particularmente, o último
parágrafo, que me colocou, durante algum tempo, a refletir, genuinamente,
acerca de como em tal situação, liberto de futuras repercussões legais, e sem
nada a temer como punição pela minha decisão para além do peso que, dali para a
frente, atormentaria a minha consciência, agiria eu. Em que situação? Naquela
em que, vendo-me na posse de um único conjunto de equipamento médico destinado
ao atenuamento de sintomas associados à Covid-19 e mesmo, à possível
recuperação, e, sendo-me apresentados, em simultâneo, dois indivíduos, uma
criança e um idoso, padecendo da doença, em ambos já num estado de tal forma
avançado que, finalizado o recobro de um, o outro já não precisaria duma cama
de hospital mas sim, dum caixão, fosse obrigado a determinar por mim mesmo, na
ausência dos parentes dos pacientes, enfermeiros ou superiores, que vida salvar
e que vida, através da minha recusa em aquele que a albergava acolher, ceifar.
À primeira vista, tal dilema não apresentaria, para muitos, grandes problemas;
afinal, é, claro, lamentável a perda de qualquer alma inocente para uma doença,
mas, se por um lado, possuírem a capacidade de prestar auxílio à sobrevivência
de uma alma inocente a quem restem inúmeras décadas de emoções e experiências,
ou, por outro lado, a uma que, possivelmente, dali a menos de cinco anos,
estará já a sete palmos abaixo da terra, uma que já experienciou tudo o que
este Mundo teria para lhe oferecer e para além de Covid-19, padece já, ou
padecerá em breve, de outras maleitas, a maioria das pessoas escolherá
priorizar a vida da criança. Porém, ao analisarmos a situação por, somente,
este prisma, estamos a desconsiderar incontáveis outros fatores e a antepor a
provável esperança de vida superior da criança a uma imensidão de outros
aspetos, pelo que, consideremos, por momentos, outras visões, por exemplo, uma,
sim, também consequencialista, mas, não em relação aos restantes anos de vida
que sobram a cada um dos dois indivíduos em causa, mas, em relação à capacidade
de cada um para praticar, de futuro, o mal. Afinal, enquanto ao resgatarmos, da
morte certa, um débil septuagenário, não estaremos, com grande probabilidade, a
alterar, para pior, o curso da História (no fim de contas, que grandes males
poderá, sobre a sociedade, libertar um idoso frágil de, imaginemos, como a
criança, da classe média-baixa, a quem, talvez, nem uma década reste), ao, em
vez disso, escolhermos salvar o indivíduo mais jovem, a criança, alguém com,
pela frente, várias décadas, estaremos a optar por acudir alguém com uma mente
ainda bastante aberta a extremismos e ideias prejudiciais para os seus
restantes concidadãos, alguém que, até à sua eventual morte, ainda a bastantes
anos dali, poderá ser responsável por inúmeras mortes e sofrimento, alguém cuja
psique não está ainda, ao contrário, muito provavelmente, da do idoso, completamente
fechada a ideais perigosos e que irão contra os direitos humanos mais básicos,
alguém que, sinceramente, não faria grande falta no Mundo. Claro que, contudo,
admito-o, não é possível afirmar com certeza, acerca desta criança, que o seu
futuro só albergará desgraças para outros, longe disso! Tal como é capaz de,
para outros inocentes, esta criança só vir a trazer tragédia, esta é também
capaz de se vir a revelar um herói, alguém disposto a lutar pela igualdade e
melhoria das condições de vida de outros, ou, simplesmente, não vir a deixar,
no Mundo, qualquer marca, e nele, apenas levar a cabo uma existência
indiferente. Porém, enquanto o futuro da criança é bastante incerto, capaz de
tomar bastantes rumos, alguns extremamente bons, outros insignificantes, e
outros, extremamente maus, o futuro do idoso é mais certo: provavelmente, até
morrer, não se alterará, grandemente, o seu statu quo, mantendo este a
mesma relação com o Mundo de sempre. Assim, é mais segura e, potencialmente,
para a restante Humanidade, benéfica, a recuperação do idoso, tendo, por isso,
o médico, nesta situação, o dever, sim, o dever, de à criança negar o futuro e
o idoso socorrer. Contudo, até nesta visão que, a alguns de vocês poderá ter
aparecido como lógica e a outros como irracional e bárbara, se prioriza a vida
de um indivíduo sobre o outro. Mas porque o deveríamos fazer? Não são todas as
vidas iguais, no fim de contas? Não é dito que a vida não tem preço? Então, com
que direito me julgaria eu, como médico, de colocar a vida de alguém sobre a
outra devido apenas ao seu tempo de vida restante ou à sua capacidade de, no
futuro, causar o mal? Não sou Deus, porque me acharia, então, com direito a
considerar que uma das duas vidas é mais digna de salvar? De facto, porque deveria,
sequer, salvar alguma daquelas duas vidas? Só porque tiveram a sorte de vir ter
a um médico com a capacidade de uma delas salvar? Então e todas as outras
pessoas no Mundo, todos os inocentes que morrem, injustamente, diariamente? Não
teriam também eles o direito de ser salvos, tal como a criança ou o idoso? Não
será, então, melhor, deixar ambos morrer e saber que não contribuí para um
aumento de desigualdade no Mundo, que não discriminei? Talvez, mas, se por um
lado, ao não discriminar quando tive a possibilidade de tal, ao escolher não
colocar quaisquer vidas acima de outras, posso considerar ter-me mantido
humano, por outro, não perderei também a minha humanidade, não poderei deixar
de poder considerar-me humano, se quando tive a oportunidade, escolhi, em vez
de um deles socorrer, deixar morrer, dolorosamente, dois indivíduos inocentes,
que me procuraram na esperança de serem salvos e que desiludi? Não terei aí,
falhado como médico, sim, mas, mais importante, como pessoa? Não terei sido,
aí, eu o verdadeiro assassino dos dois e não o vírus que por eles alastrava?
Então, haverá, afinal, alguma visão filosófica, algum curso de ação motivado por
alguma teoria ética, que nos permita manter, tanto não discriminando como não
abandonando à morte ambos os pacientes, a humanidade? Talvez, se abandonarmos
estas visões, fundamentalmente, consequencialistas, e, por isso, focadas nas
consequências de dado ato (em todo o futuro de uma criança ou, no mal de que
esta, possivelmente, será, quando crescer, capaz) e, em vez disso, tentarmos
uma outra abordagem, a kantista. Desenvolvida pelo filósofo prusso, Immanuel
Kant, esta outra abordagem filosófica, ao contrário da utilitarista, é
estritamente contra a classificação de ações como “boas” ou “más” a partir das
consequências que delas advêm, mas a partir da universalidade do princípio a
que elas aderem. Como assim, poderão, alguns de vocês, perguntar-se? Pois bem,
assim: Alguma vez, em toda a vossa vida, mentiram? Alguma vez, com o propósito
de não serem obrigados a levar com um sermão ou escaparem-se de um castigo,
alteraram, ligeiramente, a verdade? Se sim, poderão pensar que tal ato foi
praticado com grande inocência e, embora não se possa, propriamente,
classificá-lo de bom, também não se o pode classificar de mau. Contudo, de
acordo com Kant e a sua filosofia, essa pequena mentira que contaram é, sim,
uma ação má, e bastante. Porquê? Porque, se todos, na Terra, como vocês,
mentissem de modo a evitar inconveniências, teríamos um Mundo onde a vigarice,
o perjúrio e os falsos testemunhos constituíriam a norma, e, por isso, um Mundo
completamente imoral. Logo, de acordo com Kant, mentir, assim como qualquer
outra ação que, se aplicada universalmente, não resulte numa sociedade estável
e generosa, moral, é maléfica, e, sim, isso incluí mentiras para o bem de
outras pessoas. Então, que poderia eu fazer nesta situação que, se aplicado
universalmente, não resultaria numa Humanidade depravada, insensível e/ou
cruel? Escolher, independentemente do motivo, auxiliar um dos dois doentes e,
embora de coração pesado, negar ajuda a outro? Não, pois, nesse caso, se tal
princípio for aplicado universalmente, estaremos a criar uma sociedade na qual
é considerado aceitável, prestar apenas assistência àqueles cujas
circunstâncias nos agradem e sonegá-la àqueles que não preenchem os requisitos,
por nós impostos, no fundo, uma sociedade egoísta e arrogante, que,
engraçadamente, é similar àquela em que vivemos. Mas, lá por ser idêntica à
nossa, isso não faz dela perfeita ou ideal, pelo que essa opção a tomar, de
discriminar, é para deitar fora, de acordo com os ensinamentos kantistas. E
quanto a negar ajuda aos dois, acho que todos aqui podemos ver que, de acordo
com os princípios kantistas, tal decisão não é aceitável. Então, que fazer?
Tentar salvar, apesar de sabermos da impossibilidade de tal curso de ação,
ambos os doentes? Seria, sim, algo admirável, e, talvez, segundo o kantismo, aceitável,
não fosse o facto de, nessa situação, estarmos a condenar, com toda a certeza,
os dois à morte (visto que, não dedicando demasiada atenção e equipamento a um
só, não conseguiríamos salvar nenhum deles), quando poderíamos ter salvo uma
vida, criando assim, se aplicada, universalmente, essa máxima, uma sociedade
que, quando confrontada com o facto de, em dada situação, não ser capaz de
salvar todos aqueles que, devido a ela, se achem em perigo, mas ser apenas
capaz, realisticamente, de, assumamos, em 30, salvar 12, prefere, ainda assim,
não concentrar os seus recursos numa única pessoa ou único grupo, e, em vez
disso, toma a decisão de os distribuir equitativamente, e, por isso,
individualmente, de maneira insuficiente, matando, por isso, todos. Assim,
podemos ver que, na verdade, nenhum dos cursos de ação que poderíamos tomar:
negar, a ambos, ajuda, tentar salvar os dois ou, salvar um e, deixar a Morte
colher o outro, nenhum desses planos parece, se vistos de um prisma kantista,
aguentar-se de pé, apresentando todos, sem exceção, alguma falha se aplicados
de forma universal. Por isso, se nenhuma das decisões é, deste ponto de vista,
perfeita ou ideal, a única coisa que podem fazer é decidir-se por aquela que,
para vocês, aparente ser mais razoável e de acordo com os vossos princípios,
uma da qual não se venham a arrepender. É esta variedade de respostas, nenhuma
delas, do meu ponto de vista, completamente irracional ou incorreta, ao
problema de quem, nessa situação difícil, salvar, que me levou a escolher, como
preferido, este texto em particular, e, demonstra, no fim de contas, aquilo que
há de tão interessante na Filosofia, que é a imensidão de respostas possíveis e
teorias interessantes (as que mais me fascinam, e recomendo para possíveis
leitores deste comentário, são as mais radicais e/ou bizarras, como a própria
ética kantista e, embora não a compreenda totalmente, a teoria dos objetos, de
Meinong, e o conceito de especismo) que podem ser aplicadas em dada
situação.
Dinamizado pelo Grupo Disciplinar de Filosofia da Escola Secundária de Madeira Torres, este blogue abre um espaço de comunicação e de partilha em torno do saber, da cultura e dos problemas do Mundo Contemporâneo. Promove uma perspetiva interdisciplinar do conhecimento e o desenvolvimento de uma cidadania ativa. Pretende dar voz, especialmente, aos alunos, mas encontra-se aberto à colaboração da Comunidade Escolar. E-Mail de contacto: espacocriticomt@gmail.com
sexta-feira, 25 de junho de 2021
Filosofia e Pandemia: uma lista de problemas...
«Um outro problema, muito específico, colocou-se cedo e com especial acuidade. Trata-se de saber, de um ponto de vista ético, como distribuir cuidados de saúde numa situação de elevada procura e grande escassez de recursos. O critério mais aconselhado na literatura Ética é o do número de anos de vida com qualidade que se projeta para cada um dos indivíduos em causa. Por isso mesmo é que, quando temos de escolher entre salvar uma criança saudável ou alguém com muita idade ou que morreria em breve de outra doença, a escolha se impõe. Mas deve notar-se que este critério é de natureza consequencialista e pode entrar em choque com as nossas convicções sobre o valor absoluto da dignidade humana.» Fernando Rosas, hic http://espacocriticonaescola.blogspot.com/search?updated-max=2020-11-19T22:25:00Z&max-results=10#:~:text=Um%20outro%20problema,da%20dignidade%20humana.
Este é o parágrafo que o J.B. do 10ºA escolheu como ponto de partida reflexivo para o texto que se publica.
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